A lua azul e o referendo do Chega

A experiência das últimas décadas mostra que os referendos encorajam e consentem a brutal simplificação do discurso de campanha referendária. Por isso, os populistas gostam deles.

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Numa noite de lua azul, o líder do Chega viu a luz e, deslumbrado, decidiu propor um referendo sobre "questões de imigração". A realização desse referendo, proclamou, é condição incontornável (ou irrevogável?) do voto favorável do Chega no Orçamento de Estado de 2025.

Por aqueles lados a Constituição não é amada, mas não é plausível que seja desconhecida. Portanto, esta proposta começa por ser uma assumida chantagem sobre o Presidente da República, o único que tem competência para convocar referendos nacionais, mediante proposta da Assembleia da República, do Governo ou de grupos de cidadãos. O Chega exige que a AD aceite propor um referendo — via Assembleia da República, dada a matéria —, e que o Presidente o convoque. Se este não o fizer, será um dos responsáveis por o Chega não votar a favor do dito Orçamento.

Todavia, mesmo que o Presidente da República aceitasse assumir responsabilidade direta na criação de condições de viabilização do Orçamento, o referendo enfrentaria enormes obstáculos. Desde logo, não se vislumbra que questão objetiva, clara e precisa poderia ser colocada aos portugueses residentes no território nacional e no estrangeiro regularmente recenseados (sim, muito possivelmente, os emigrantes portugueses também seriam chamados a pronunciar-se sobre os imigrantes em Portugal…) sobre a complexíssima questão das “quotas”.

Por isso, quando chamado a pronunciar-se em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade e da legalidade, o Tribunal Constitucional seguramente não abandonaria a jurisprudência exigente que tem mantido ao longo dos anos sobre o que é uma pergunta objetiva, clara e precisa. O referendo do Chega, apesar de incontornável (ou irrevogável?) morreria aí.

Se não morresse, ainda teria outro sério obstáculo a superar: o da constitucionalidade da pergunta e da legislação que presumivelmente teria de ser produzida em caso de resposta positiva. Ora, mesmo que o Chega aceitasse expurgar a referida pergunta de todas as tonalidades xenófobas do seu discurso, há um milhão de possibilidades de que a pergunta, mesmo assim, ultrapassasse a linha da constitucionalidade.

Deixei para o fim a reflexão mais séria e mais decisiva. A experiência das últimas décadas mostra que os referendos encorajam e consentem a brutal simplificação do discurso de campanha referendária. Por isso, os populistas gostam deles e pretendem que os mecanismos da democracia representativa sejam substituídos pela realização de referendos. Por isso, eu próprio, que tive em tempos responsabilidade na Lei do Referendo Nacional e na preparação da Lei do Referendo Local, deixei de apoiar a realização de referendos quando estão em causa questões que se prestam aos populismos mais despudorados e às emoções mais capilares.

Um referendo sobre a entrada de estrangeiros para residir em território nacional rapidamente seria transformado por aqueles populistas num referendo sobre se queremos estrangeiros no nosso país ou não. E isso constituiria um retrocesso civilizacional que nos cinquenta anos do 25 de Abril e da Assembleia Constituinte não pode ser tolerado.

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