Comer peixe? “Preferia fazer um teste de matemática”

Um jornalista, uma nutricionista e um chef entram numa cantina escolar do concelho de Matosinhos para promover o consumo e peixe. A coisa parecia simples, mas foi tudo menos isso.

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O chef Arnaldo Azevedo transformou a cavala num hambúrguer crocante, julgando que os miúdos iriam adorar. Pois, não adoraram, para dizer o mínimo.. Hugo Taipa/Frame In
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“Em matéria de educação alimentar, trabalhar com crianças e jovens é do mais difícil que há", aponta Ada Rocha. "Por um lado, têm ideias preconcebidas muito vincadas. Por outro, nem vale a pena ir pelo caminho da saúde porque eles julgam que são eternos." Hugo Taipa/Frame In
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O chef Arnaldo Azevedo transformou a cavala num hambúrguer crocante, julgando que os miúdos iriam adorar. Pois, não adoraram, para dizer o mínimo.. Hugo Taipa/Frame In
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Seriam mais ou menos 14 horas quando chegamos às imediações da Escola EB 2,3 Dr. José Domingos dos Santos, em Lavra, Matosinhos. Havia que almoçar rapidamente antes iniciarmos uma sessão de literacia sobre peixe para três turmas com alunos entre os 11 e os 12 anos, com a ajuda da nutricionista Ada Rocha e o chef Arnaldo Azevedo. A opção recaiu num clássico snack-bar literalmente em frente à escola. Avaliadas as opções, decidimo-nos por uma sopa de legumes (nada a apontar) e por uma sandes de pasta de atum cujo pão era uma espécie de esponja sensaborona de farinha hiper-refinada (por que razão chamarão pão àquilo?).

Ao nosso lado estão meia dúzia de alunos que comem sandes com o mesmo pão (não conseguimos deslindar o recheio) e batatas fritas em forma de palito e de pacote. Bebida, Coca-Cola original. Comem invulgarmente em silêncio, com os pescoços curvados sobre os telemóveis. Quando terminam as batatas, um deles faz a sugestão de sobremesa: gelados da Olá. Aprovado por unanimidade.

Avaliamos o cenário e começamos a ficar vagamente ralados: como é que a equipa do PÚBLICO, a Ada e o Arnaldo vão convencer 124 miúdos da bondade de se comer peixe? Em concreto, cavala. Os riscos são elevados, mas como o chef transformou a cavala num hambúrguer crocante, com uma maionese ligeira, pão de brioche, tomate e alface, é óbvio — está na cara — que os miúdos vão adorar a coisa. Pois, para dizermos o mínimo, não adoraram. Em rigor, a única coisa óbvia foi a nossa ingenuidade e a do chef (Ada Rocha já viu tanta vez este filme que só esboçava sorrisos).

Grosso modo, podemos dizer o seguinte: a) a larga maioria das crianças não come e não gosta de peixe; b) a larga maioria das crianças não é desafiada pelos pais a comer regularmente peixe (se dizem que não gostam, os progenitores não insistem); c) a larga maioria das crianças não quer saber do exercício saudável que é comer peixe; e d) a larga maioria das crianças recusa de imediato a hipótese de sequer provar peixe.

Ainda assim, depois de se apresentar o hambúrguer de cavala feito por um chef com estrela Michelin (alguns miúdos gostam do Master Chef Kids) e depois de muita conversa sobre a importância da ingestão de peixe para o desenvolvimento físico e mental, a maioria dos alunos acedeu a provar o picado saboroso de peixe. Uns retiraram de imediato o tomate e a alface, outros não passaram da primeira dentada, outros divertiram-se a fazer aviões com uma folha informativa sobre o valor nutricional do peixe e uns poucos — mesmo poucos — pediram para repetir. Uma criança com os cotovelos na mesa, cabeça apoiada nos punhos e olhar contrariado inclinado para o hambúrguer desabafou: “Preferia fazer um teste de matemática.”

O projecto Todo o Peixe é Nobre Temporada 2 tem por objectivo promover a diversificação do consumo de espécies, sendo que a Câmara Municipal de Matosinhos está empenhada em colocar o peixe na dieta das crianças e dos jovens de um concelho onde o peixe tem a importância que se conhece, mas está perante um problema complexo porque, em rigor, muitos pais destas crianças gostam tanto de peixe como os filhos. Ou seja, como os pais já fazem parte de uma geração que teve acesso facilitado e a baixo preço a proteína animal de diferentes espécies, o peixe deixou de ser uma prioridade, ao contrário do que acontecia com os pais destes.

Algumas crianças referiam mesmo que tinham mais contacto com peixe quando estavam com os avós. “Nunca como peixe”, “não gosto de peixe”, “não gosto do sabor”, “os meus pais não insistem”, “como de vez em quando”, “a carne é mais saborosa”, eis alguns comentários que se ouviam no refeitório da escola de Lavra.

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A ideia do chef Arnaldo Azevedo foi “criar algo minimamente atractivo do ponto de vista de sabor e textura, visto que se apresentasse um filete de cavala confitado a desgraça ainda seria maior”. Hugo Taipa/Frame In

Não é a escola que vai resolver os problemas

Professora na Faculdade de Nutrição da Universidade do Porto e especialista na área de Alimentação Colectiva e Restauração, Ada Rocha não se espanta com o comportamento das crianças e salienta-nos que “estamos perante um problema complexo e com variáveis muito distintas”. Embora não seja novidade, “o primeiro problema está nas famílias, sempre nas famílias. Se os pais não se empenham em preparar refeições de peixe com os filhos, não vai ser a escola a resolver o problema”.

E não vai ser a escola porque não só as ementas são pouco atraentes em matéria de espécies presentes nos menus (a regra é comprar o mais barato que se apanha), como as preparações dos pratos são, por vezes, a razão principal por que uma criança se recusa a comer peixe.

“Em matéria de educação alimentar, trabalhar com crianças e jovens é do mais difícil que há porque, por um lado, têm ideias preconcebidas muito vincadas (nunca provaram determinado ingrediente, mas já sabem que não gostam) e, por outro, nem vale a pena ir pelo caminho da saúde porque eles julgam que são eternos, que não adoecem e que isso da diabetes, das doenças cardiovasculares ou oncológicas é um problema de velhos e não deles”, salienta a investigadora. “Na melhor das hipóteses as questões da sustentabilidade podem fazer mudar alguns comportamentos.”

Ainda tentamos, na algazarra da sala — e, caramba, como podem ser barulhentos — captar a atenção dos alunos para a importância do ómega 3 (abundante em determinadas espécies de peixe), combinado com vitamina B12, para a prevenção de um conjunto de doenças neurodegenerativas, mas de pouco valeu. E porquê? Porque a noção temporal de uma criança não se compara com a de um adulto. Neste sentido, a iniciativa na Escola Dr. José Domingos dos Santos foi uma aula e tanto.

Numa das turmas optámos por não dizer qual era a origem do hambúrguer. Como este tinha sido panado com panko, a fritura deu-lhe um carácter crocante que podia disfarçar a natureza da proteína em causa (cavala). Sim, é certo que a fritura não é a melhor proposta nutricional, mas a ideia de Arnaldo Azevedo foi “criar algo minimamente atractivo do ponto de vista de sabor e textura, visto que se apresentasse um filete de cavala confitado a desgraça ainda seria maior”. Seja como for, na turma em que os alunos não sabiam o que iam a comer a taxa de aprovação do hambúrguer foi maior, o que revela bem quão preconceituoso pode ser o ser humano à mesa (crianças, jovens ou adultos).

Outro dos problemas que a nutricionista aponta é a facilidade com que crianças e jovens chegam às praças de alimentação dos centros comerciais ou dos supermercados de média dimensão, que crescem como cogumelos em qualquer bairro, e onde o conceito de fast food reina. “Os jovens podem comprar um conjunto de alimentos — de sandes, a hambúrgueres e pizas —, pedir que os aqueçam nos microondas e depois seguem para os jardins para comer com os amigos.”

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“Se os pais não se empenham em preparar refeições de peixe com os filhos, não vai ser a escola a resolver o problema”, sublinha a nutricionista Ada Rocha. Hugo Taipa/Frame In

Sem sabor, a nutrição não funciona

Para agravar tudo isso, temos o problema da formatação/pobreza do gosto. Quando as crianças constroem os seus padrões de gosto a partir de dois sabores primários — o doce e o salgado —, que são a base das propostas do fast food, acabam por desenvolver uma aversão a outros sabores elementares (ácido, amargo ou umami) e a outras texturas que existem em alimentos importantes do ponto de vista nutricional.

E quando dizemos “aversão a sabores”, dizemos aversão a muito do receituário clássico português. “Se uma criança for habituada desde cedo a beber refrigerantes é difícil fazer-lhe gostar de sumos naturais que não tenham a mesma quantidade de açúcar. Se estão habituadas a comer bolachas ou gelados industriais, é difícil habituá-las a doces caseiros com pouco açúcar”, refere Ada Rocha.

Todos estes problemas estão identificados há muitos anos, com estudos para todos os gostos e que estão bem resumidos e explicados num trabalho recente de Alexandra Prado Coelho.

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Apresentado o hambúrguer de cavala feito por um chef com estrela Michelin e após muita conversa sobre a importância da ingestão de peixe para o desenvolvimento físico e mental, a maioria dos alunos acedeu a provar o picado saboroso de peixe. Uns poucos – mesmo poucos – pediram para repetir. Hugo Taipa/Frame In

Há, todavia, uma questão que raramente é abordada: a qualidade dos produtos e qualidade das receitas que são servidas nas cantinas das escolas, regra geral preparadas por funcionários públicos que não têm formação em cozinha ou empresas de catering. Não estamos a sugerir que se sirva às crianças salmonetes ou pregado. Uma posta de pescada bem trabalhada é atractiva para uma criança, desde que não se ferva a mesma em água durante 20 minutos até se transformar em papa de peixe.

Com cavala, sarda, carapau, sarrajão e outras espécies injustamente consideradas menos nobres podemos preparar inúmeros pratos cativantes para as crianças. Pais que fazem da alimentação uma prioridade em matéria de nutrição e de sabor (não se trata de luxos) e chefs que costumam passar pelas cantinas das escolas sabem isso muito bem. Vítor Sobral, por exemplo, é um mestre nesta matéria. Com os ingredientes-base disponíveis nas cantinas das escolas, mete os miúdos a comer tudo e mais alguma coisa.

Promover a tão desejada literacia alimentar da sociedade portuguesa — com os impactos positivos ao nível do Sistema Nacional de Saúde, da Segurança Social e do desporto — não pode traduzir-se apenas em doses consideráveis de nutrição. Sim, o domínio da nutrição é importante, mas de nada servirá às crianças saberem muito sobre proteínas, vitaminas, hidratos de carbono e aminoácidos se aquilo que lhes apresentam no prato não for atraente do ponto de vista de sabor.

O que facilmente concluímos com esta iniciativa — e isso devia ser tido em conta pelos decisores dos ministérios de Educação, Saúde e Agricultura — é que é pela boca que começamos a mudar comportamentos de crianças que já têm maus hábitos. A receita tem de ser uma conta de somar de valores nutricionais + receitas e refeições com sabor. Uma só parcela não funciona. Ponto.

Sim, sabemos que este não é um problema de solução fácil. Que não se resolve de um ano para o outro. E se calhar nem de uma década para a outra. Mas o facto de haver câmaras municipais, como a de Matosinhos, preocupadas com o assunto já é um bom sinal. Já é um princípio. Um Estado com visão tem de perceber que investir na literacia alimentar é investir no futuro do país. Não é um capricho.

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