O jerricã

Naqueles segundos, Miguel fantasiou com ela a correr para os braços dele, os seus olhos a encontrarem-se, profundos e cheios de promessas não cumpridas.

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"Tenho de me resolver primeiro antes de nos resolver a nós" Nelson Marques
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O comboio aproximava-se a alta velocidade, mas Miguel recusava-se a sair do meio da linha, sentindo a coragem agigantar-se com a adrenalina que lhe percorria o corpo. Cego de paixão, decidira ignorar todos os avisos que anunciavam o perigo do embate iminente. A prudência serve de pouco quando o coração quer muito. Pela oportunidade de alcançar uma felicidade plena e embriagadora, estava disposto a oferecer-se ao sacrifício. Se a tragédia se consumasse, voltaria a montar todos os ossos do esqueleto, esperaria que as feridas sarassem, far-se-ia inteiro de novo, mas jamais se acovardaria diante da possibilidade de um final feliz. No meio da bruma que cobrira os seus dias desde que ele e Maria se haviam conhecido, só uma coisa era clara: ela seria sua. Não se renderia por causa de uns obstáculos no caminho, por mais intransponíveis que pudessem parecer para aqueles que preferem evitar a dor a todo o custo.

Estava consciente do caos que tomara de assalto a vida de Maria. Ela não perdia uma oportunidade para o chamar à realidade, parecendo-lhe oferecer-lhe o pretexto ideal para se retirar, se não queria correr o risco de se magoar. Ao mesmo tempo, sabia perfeitamente como mantê-lo por perto, assegurando que o seu interesse por ela não esmoreceria:

— Tenho de me resolver primeiro antes de nos resolver a nós. Sê paciente, o nosso dia chegará.

Só um tolo aceitaria ficar ali, naquele terreno pantanoso, afundando-se nas indecisões dela.

Antes de jantarem naquela noite quente de verão, no mesmo restaurante e na mesma mesa onde se tinham encontrado uma semana antes, Miguel sentia-se sufocar por um desejo prolongado e reprimido, como um vulcão prestes a entrar numa erupção incontrolável. A ansiedade que sentia só a boca dela podia acalmar. Precisava tocar-lhe os lábios ao de leve, como a brisa que balança as pétalas de uma flor, ensaiar uma dança sensual com as suas línguas, explorar todos os recantos da boca dela, dar-lhe um beijo daqueles que mudam vidas. Tinha ânsia de cair no abismo dela. Quando a paixão ferve, tem pressa de ser consumada.

O plano saiu-lhe furado, porque o passado de Maria, varrido para debaixo do tapete, arranjou forma de se tornar presente. Bastou uma mensagem do ex-namorado, a sombra que ele julgara ter ficado para trás, para a alegria sumir do rosto dela. Os olhos que brilhavam durante todo o jantar perderam subitamente a luz, como se se enchessem de nuvens que anunciavam uma tempestade:

— Foda-se, que merda. Está a dizer-me coisas horríveis.

Vendo-a tão angustiada, com a felicidade momentânea desfeita em cacos, Miguel soube que a sua oportunidade se tinha esfumado uma vez mais. Ainda não seria naquela noite que ela devolveria a vida.

Quando se despediram à porta do restaurante, Maria entregou-se nos braços de Miguel, o peito dela comprimido contra o dele, tão colados que podiam sentir o pulsar do coração um do outro. Dava vontade de morarem ali para sempre, naquele abraço forte e demorado, capaz de abrandar o tempo e parar tudo à volta deles. Ali, dentro daquele casulo seguro, só havia espaço para eles, não cabia o caos em que mergulhara a vida dela. Antes de abrir os braços e deixá-la partir, ele sussurrou-lhe ao ouvido:

— Decidas o que decidires, só quero que sejas feliz.

Num derradeiro impulso, ainda imaginou coragem para lhe roubar o beijo tantas vezes sonhado, mas afastou-se em passos lentos sem tirar os olhos dela. Maria entrou no carro, mas não ligou a ignição. Saiu de supetão, como nos filmes de Hollywood, e caminhou para ele no seu jeito irresistível e hipnotizante, o cabelo loiro e solto a cair-lhe sobre o vestido florido sem lhe tapar o decote tentador, uma obra de arte desenhada com bom gosto e feminilidade. Naqueles segundos, Miguel fantasiou com ela a correr para os braços dele, os seus olhos a encontrarem-se, profundos e cheios de promessas não cumpridas, a mão na cintura delicada de Maria, puxando o corpo dela contra o dele, num misto de força e ternura, os corações batendo em uníssono, até que as suas bocas se fundiriam como se fossem uma só. Perder-se-iam um no outro e, por fim, se encontrariam.

Estava nesse delírio quando Maria se abeirou dele e o arrancou daquele sonho sem piedade: "Acreditas que fiquei sem gasolina?! Podes dar-me boleia? Preciso de ir comprar um jerricã para abastecer o carro." Conformado, Miguel rasgou um sorriso perante a ironia daquele desfecho. Talvez a sua psicóloga tivesse razão e tudo o que precisassem fosse de um pouco de combustível para incendiar aquele desejo. Mal podia esperar para a ver de novo. Há finais que só o tempo pode escrever.

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