Cachorro sem salsicha

Podia acabar com a minha saúde, mas jamais com a ordem natural do mundo. Mexer com conceitos que se têm arrumados é o que mais inquieta o ser humano. Tratava-se da batalha do absurdo contra a lógica.

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"A opção de largar a parte essencial acaba por ser uma atitude que tenho muito na vida" Nadin Sh/Pexels
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Em criança comia sempre cachorro quente sem salsicha. Chegava timidamente ao balcão do bar de praia e pedia: “É um cachorro sem salsicha, se faz favor.” Seria isso apenas um pão? Perguntam, e bem. A resposta é sim, mas não só. Cheguei à conclusão precoce, aos seis anos, de que o que eu gostava era dessa combinação absurdamente calórica dos acompanhamentos de um cachorro. Cachorro sem salsicha. Poderia ser um verso da famosa canção da Adriana Calcanhoto, mas era o meu almoço de Verão. Eu abdicava, feliz, do essencial. Gostava das redondezas do cachorro: do subúrbio onde habitava a batata palha, dos arrabaldes onde escorria a mostarda, do desvio da cebola caramelizada, das adjacências do pão torrado.

Estupefacção era o que mais recebia do outro lado. Conseguir realizar este pedido foi uma das grandes batalhas da minha infância. Pelo meu historial de pedidos insólitos, onde se contavam o pão sem madeira (nome que dava à côdea), o pastel de nata sem canela, ou apenas e só a gema do ovo estrelado, creio que os meus pais já vinham com alguma preparação para as surpresas que as minhas escolhas alimentares revelavam.

Se estava com a minha mãe, ela, em desapego bronzeado de férias, por milagre, acedia. Se estava com outra pessoa, geralmente achava isso tão absurdo que a solução que encontrava era obrigar-me a comer a salsicha.

Esta talvez seja a única história em que um adulto obriga uma criança a comer um enchido gorduroso ultraprocessado como se se tratasse de um alimento nutritivo. Em nome da saúde? Não, em nome de uma coisa que não aceitamos que ninguém abale: a lógica. Aquele meu pedido estranho desorganizava convicções muito enraizadas. “Cachorro sem salsicha nem pensar!” Eu podia acabar com a minha saúde, mas jamais com a ordem natural do mundo. Mexer com conceitos que se têm arrumados é o que mais inquieta o ser humano. Tratava-se da batalha do absurdo contra a lógica. Um cachorro tem salsicha. Se não tem salsicha, não é um cachorro. Logo, esse é um pedido impossível.

Da parte dos estabelecimentos, havia vários tipos de recepções. No bar de praia típico, já sabiam e sorriam. Ainda hoje me tratam pela menina dos cachorros sem salsicha, título que, admito, envergo com mais vergonha do que orgulho.

Noutras ocasiões, no entanto, aconteceu-me obter a resposta que me fez ficar exímia a treinar argumentação com empregados de snack-bar. A primeira reação, das próprias entidades que iriam lucrar uma salsicha com o assunto, era dizer: “Não pode ser!” A lógica à frente da saúde, a lógica, também, à frente do lucro.

Eu guiava-os nesse vazio que a ausência da salsicha parecia instalar. Pedia-lhes calmamente que fizessem um cachorro normal, com salsicha. E que no fim, tirassem a salsicha e a usassem no cachorro seguinte. Eu era uma espécie de Chapeleiro Louco dos cachorros quentes. Entrei por outros campos de debate, servindo-me da própria arma dos meus adversários: a lógica. A lógica ao serviço do absurdo: “A salsicha não faz mal? Assim estou a comer menos uma coisa que faz mal.”

Apesar da insistência neste pedido, muitas vezes saía derrotada. Por isso, claro que muitos cachorros ditos convencionais passaram por mim. O que fazia eu com a salsicha? Tornei-me especialista em ocultá-la por baixo de batata palha ou em dá-la a algum cão que lhe sabia dar o devido valor.

A opção de largar a parte essencial acaba por ser uma atitude que tenho muito na vida, involuntariamente. A de abdicar da substância e concentrar-me apenas no acessório, no que está à volta. Não demonstro interesse em ir directa ao ponto, gosto mais dos contornos. Prefiro o desvio ao cerne, o redor ao âmago.

Fazer do entorno recheio é uma escolha muito incompreendida e criticada, a que dou uso, sobretudo, nas crónicas. O principal fica de fora. E assim é outra vez. Aqui vai mais uma crónica sem salsicha.

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