Do alto da Torre Eiffel, debaixo de chuva e num vestido pejado de pérolas, há uma semana, Céline Dion cantou o grande nome da música francesa Edith Piaf e o seu Hymne à L'Amour. Nas horas e dias seguintes, as notícias e comentários na Internet voltaram-se para o regresso da cantora canadiana, que há algum tempo deixara de actuar por culpa de uma doença incapacitante, para a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos. Mas e a canção escolhida?
"Não esperava e ainda estou impressionado, quando vi Céline Dion cantar Hymne à L'Amour, naquele contexto e cenário excepcionais, mas o que é facto é que pensei imediatamente em Marcel Cerdan", declara o historiador francês Michel Merckel ao The Washington Post (WP).
Quem era Marcellin "Marcel" Cerdan? Figura lendária do boxe francês e ícone da geração do pós-guerra, Marcel Cerdan nasceu a 22 de Julho de 1916, na Argélia, numa família pobre. Incentivado pelo pai, Marcel, o quarto e último filho da família, começou a praticar boxe no espaço do café do pai, em Casablanca, Marrocos. Então, Argélia e Marrocos estavam sob domínio francês.
Acabando por se profissionalizar, o jovem lutador chega a França, onde se torna conhecido como "o bombardeiro marroquino", recorda o site francês Sud Ouest. O boxeur teve uma vida tumultuosa, uma carreira cheia de vitórias e foi considerado o maior lutador francês. Em Junho de 1939 conquista o título europeu de pesos-médios, na Itália de Mussolini. Tinha 23 anos e quando rebentou a Segunda Guerra, Cerdan estava a caminho do título mundial.
Até 1945, continuou a lutar boxe e a competir em França e no Norte de África. Mas para chegar à América, onde tudo se decidia, o jovem francês teria de esperar pelo fim do conflito. Foi na noite de 21 de Setembro de 1948 que se tornou campeão mundial de pesos-médios ao derrotar o norte-americano de origem polaca Tony Zale, nos EUA. Regressou a Paris, onde foi recebido como um herói. Até ao final da carreira contabilizou 110 vitórias e apenas quatro derrotas.
Embora casado e pai de três filhos, Marcel Cerdan tornou-se uma figura popular na cena parisiense devido ao caso com a famosa cantora Edith Piaf (1915-1963). O casal compraria uma casa em conjunto, em Paris. O affair durou desde o Verão de 1948 até à morte de Cerdan no Outono de 1949. O lutador estava em Paris e decidiu voar até Nova Iorque, onde Piaf actuava e onde tinha um combate marcado. O avião da Air France onde seguia, mais 47 pessoas, despenhou-se contra o Pico da Vara, na ilha de São Miguel, quando se aproximava de Santa Maria, para fazer escala. Morreu a 28 de Outubro de 1949. Tinha 33 anos.
Um mês antes do acidente, Piaf lançara Hymne à L'Amour, com letra da própria e música de Marguerite Mannot. Canta-a, pela primeira vez, no cabaret Versailles, em Nova Iorque, a 14 de Setembro de 1949. É uma canção onde confessa o seu amor e tudo o que faria (e abdicaria) para se manter ao lado do homem amado. Ao saber da morte de Cerdan, a artista entrou numa espiral de desespero, mas, nessa mesma noite, subiu ao palco, em Nova Iorque, para cantar e dedicar a canção ao seu amor. Alguns relatos dizem que, logo de seguida, Piaf caiu no chão.
"Marcel Cerdan é uma figura emblemática do desporto francês", defende o historiador Michel Merckel ao WP, acrescentando que o "seu relacionamento amoroso com Edith Piaf aumentou a sua lenda. Ambos vindos de origens muito modestas, eram adorados pelos franceses". O amor de ambos chegou aos ecrãs de cinema com dois filmes: o de Claude Laleouch, Edith et Marcel, de 1983, no qual o filho do pugilista, Marcel Jr., interpretou o papel do pai; e com La Vie en Rose, de Olivier Dahan, de 2007, que rendeu o Óscar de Melhor Actriz a Marion Cottilard, no ano seguinte.
A canção tornar-se-ia um ícone depois da morte de Cerdan, a quem Piaf a dedicou. Foi gravada em Maio de 1950. Dois anos depois, Piaf cantou-a no filme de Pierre Montazel, Paris chante toujours. Depois disso, foi interpretada por muitos artistas franceses, como Mireille Mathieu, Sylvie Vartan ou Johnny Hallyday, ou, mais recentemente, por Phil Collins ou Cindy Lauper.
Não foi a primeira vez que Céline Dion cantou Hymne à L'Amour — fê-lo na cerimónia dos American Music Awards em homenagem às vítimas dos atentados de Paris, de 13 de Novembro de 2015. Também não foi a primeira vez que a canção de Piaf foi interpretada nuns Jogos Olímpicos. Há quatro anos, a cantora japonesa Milet entoou-a em Tóquio, num tom alegre. Já a versão de Dion para os Jogos de Paris é mais dramática, numa interpretação emotiva, debaixo de chuva, num momento de vitória para a própria.