Depois de Biden, “águas nunca dantes navegadas”. Obama dixit

Joe Biden e os democratas podem ter acordado tarde de mais, a menos que as palavras de Obama sobre “águas nunca dantes navegadas” possam abrir uma janela. Michelle candidata-se?

Reserve as quintas-feiras para ler a newsletter de Ana Sá Lopes em que a política vai a despacho.
Ouça este artigo
00:00
03:55

Era uma questão de dias até Joe Biden retirar-se da corrida às presidenciais americanas. A pressão de Barack Obama e Nancy Pellosi – ao lado de um coro muito ruidoso de dirigentes democratas – acabou por ter o resultado previsto, por muito que Biden se considerasse ainda ser o único capaz de derrotar Trump. Biden lutou até ao fim por aquela que era a sua convicção, mas rendeu-se à evidência, não só da sua fragilidade física, mas da falta de apoio do Partido Democrata, que, não há muito tempo, o tinha entronizado como candidato à sua própria sucessão.

Este processo penoso é culpa do Partido Democrata – muito para lá da auto-avaliação, um processo difícil, de Joe Biden. Há três anos e meio, o “ticket” Biden-Harris trazia um anexo subentendido: Joe Biden não se recandidataria a segundo mandato e Kamala Harris seria a candidata seguinte dos democratas. No seu mandato, Biden entregou-lhe a difícil pasta da imigração, mas não soube – ou não quis – preparar o país para Kamala Harris.

John Adams, que foi o primeiro vice-presidente dos Estados Unidos, queixava-se de que George Washington não lhe ligava nenhuma e que o papel de vice-presidente podia ser o mais inútil dos Estados Unidos da América. Há reminiscências disto na vice-presidência de Kamala Harris. A verdade é que, ainda assim, John Adams foi eleito o segundo Presidente americano.

Joe Biden já não conseguiria, em nenhuma circunstância, bater a dupla Trump-Vance. As dúvidas sobre se Kamala Harris conseguirá são imensas, tendo em conta a sua dose baixa de popularidade nos Estados Unidos. Biden endossou Harris como a sua “candidata" e esta noite a vice-presidente veio anunciar a sua candidatura.

É a solução mais “prática” ser a vice-presidente a candidata democrata, nomeadamente na facilidade com que o dinheiro já carreado pelos financiadores do partido para a campanha Biden pode ser imediatamente “transferido” para a campanha Harris.

Mas os próximos dias podem trazer surpresas: e por muito que a candidatura de Michelle Obama pareça estar fora dos cenários de quase toda a gente, a verdade é que as sondagens colocam a mulher do antigo Presidente como a única pessoa com capacidade indubitável para derrotar a dupla Trump-Vance.

E neste momento de hipertensão para os Estados Unidos e para o mundo, para grandes males devia haver grandes remédios. Barack Obama escreveu ontem, depois da demissão de Biden, que “estamos a viver mares nunca dantes navegados” e não apoiou Kamala. Se isto pode criar alguma esperança de que Michelle possa vir a ser candidata? Pode.

Derrotar Trump e aquele que dá ao trumpismo um desígnio político e intelectual, J.D. Vance, é quase uma emergência mundial. Vance não sabe onde fica a Ucrânia (palavras dele) e Trump diz que vai resolver todos os conflitos pelo telefone. Quem assistiu ao primeiro comício pós-convenção ficou com uma ideia dos amigos de Trump.

De certa forma, até agora, Putin parecia ter vencido as eleições nos Estados Unidos da América e pouco deveria demorar para que viesse a ocupar toda a Ucrânia. Até que ponto esta previsão, que parecia vir a confirmar-se em Novembro se Joe Biden continuasse candidato, não se vai poder repetir com Kamala Harris? O Partido Democrata tem uma enorme responsabilidade pela frente e, até agora, tem sido um desastre de gestão política.

Antes de saber da notícia da desistência de Biden, estava a lembrar-me do Presidente Woodrow Wilson, que teve um ataque cardíaco incapacitante que a mulher – Edith Wilson – conseguiu ocultar do público, gerindo ela os assuntos do Estado. Num dos romances do Império (“Hollywood), Gore Vidal conta este episódio com a sua particular genialidade.

No fim dos anos 50, também Churchill e o seu número 2, Anthony Eden, estiveram todo um Verão mais ou menos secretamente incapacitados (Churchill a recuperar lentamente de um grave AVC, Eden de complicadíssimas operações aos intestinos). O genro de Churchill e mais uns assessores geriram o Reino Unido e o que sobrava do Império.

Este era o mundo de ontem. Biden e os democratas podem ter acordado tarde de mais, a menos que as palavras de Obama sobre “as águas nunca dantes navegados” possam abrir uma janela.

Sugerir correcção
Ler 14 comentários