O passado roubado na algibeira

Joana Marques Vidal conhecia e tratava pelo primeiro nome todos os funcionários e colaboradores daquela casa. Para todos tinha um sorriso e tempo para dispensar.

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Depois de por diversas vezes o ter adiado, decidi arrumar o escritório cá de casa. A tarefa revelou-se demorada. O que era suposto não tomar mais do que uma tarde a fazer, protelou-se por diversas semanas. Por arrumar entenda-se pegar nas centenas de folhas acumuladas em diversas estantes e sobre a secretária, tentar traduzir o que nelas escrevi há meses e até anos atrás, durante sessões de julgamento ou no decurso de investigações que dirigi, e perceber se algo do que fui guardando, mais por inércia do que por método, era digno de continuar a ocupar espaço ou merecia ser deglutido na trituradora. Regra geral, o destino foi a obliteração.

Em cima da secretária, sob o amontoado de folhas soltas cujos rabiscos manuscritos no verso só muito a custo decifrava, encontrei um pequeno crachá de metal, com cerca de três centímetros de diâmetro, um fundo branco e a inscrição "I love PGR", com um pequeno coração, a vermelho vivo, a fazer as vezes do verbo amar. Os sinais do tempo que passa, potenciados pela humidade da região em que moro, eram já bem visíveis nas manchas de oxidação que se espalhavam pelo pequeno objecto. Pensei em deitá-lo fora, juntamente com os destroços das folhas que a trituradora ia expelindo, mas algo me impediu de o fazer.

A 19 de outubro de 2018, logo após ter cessado as funções de procuradora-geral da República, foi organizado um almoço de homenagem à Dra. Joana Marques Vidal, na casa de família, em Águeda. Tive a honra, na qualidade de então vogal do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), de participar no mesmo, juntamente com largas dezenas de outros convidados, entre magistrados, judiciais e do Ministério Público, advogados, professores, oficiais de justiça, colaboradores da Procuradoria-Geral da República e outras pessoas da mais diversa proveniência. Alguns eram amigas e amigos de longa data da Dra. Joana. Outros, como eu, privavam com ela há relativamente pouco tempo. Foi nesse almoço que recebi aquele pequeno objecto, se bem me lembro concebido, em homenagem à tia, pelos seus jovens sobrinhos para ser distribuído pelos comensais como lembrança. Disso recordado, guardei o crachá em lugar de destaque.

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Nos cerca de dezoito meses em que durante o seu mandato como PGR convivemos na Procuradoria-Geral da República, a Dra. Joana Marques Vidal foi sempre um exemplo de humanismo e de liderança. Conhecia e tratava pelo primeiro nome todos os funcionários e colaboradores daquela casa, preocupando-se não só com as condições em que trabalhavam, como com as suas famílias e angústias pessoais. Para todos tinha um sorriso e tempo para dispensar. Nas diversas visitas aos serviços do Ministério Público das 23 comarcas do país, fazia questão de dar espaço a toda a gente para falar. Nessas ocasiões, ao almoço queria sempre sentar-se junto dos mais novos e longe dos elementos do seu gabinete e dos membros do CSMP que a acompanhavam, afirmando que com estes conversava todos os dias!

Presidiu ao CSMP com uma elevação e sentido de justiça reconhecidos por magistrados e não magistrados. Não obstante a sua posição de liderança naquele órgão, admitia, e até instigava, a crítica, valorizava a discussão, que por vezes era acalorada, nunca tomando o dissenso funcional por desconsideração pessoal. Durante larga parte daqueles dezoito meses, fui o mais novo dos dezanove membros do CSMP, sentando-me à comprida mesa de sessões no lugar mais distante do ocupado pela Dra. Joana Marques Vidal. Nem por isso, por uma única vez, me senti menos ouvido ou considerado.

Mas não foi só internamente, junto dos magistrados do Ministério Público ou no seio da Procuradoria-Geral da República, que a Dra. Joana Marques Vidal elevou o Ministério Público português. Honrando o seu passado pessoal de intensa preocupação cívica, abriu o MP à sociedade civil, colaborando com diversas organizações e associações. Também no âmbito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e da Associação Ibero-Americana de Ministérios Públicos fez um esforço enorme para reforçar os laços entre os Ministérios Públicos dos países que integram estas organizações. As diversas notas de pesar que, em Portugal e no estrangeiro, foram emitidas por ocasião da sua morte são o reconhecimento justo do seu trabalho e empenho cívico.

A Dra. Joana reunia periodicamente com os vogais em regime de tempo integral do CSMP, como era o meu caso, e fazia questão de almoçar connosco. Desenvolvemos em consequência uma relação de amizade que se protelou para lá de outubro de 2018 e se reforçou desde então. Mas não era difícil ser amigo da Dra. Joana, antes pelo contrário. Adorava discutir ideias. Ouvia mais do que falava. Raramente se queixava. Tinha sempre uma palavra amiga. Sabia rir, mesmo de si própria. Gostava, genuinamente, de pessoas. De as conhecer e de estar com elas.

Já após ter deixado o cargo de PGR, colaborou por diversas vezes com a Procuradoria-Geral da República de São Tomé e Príncipe, em especial no reforço das suas capacidades institucionais, na proteção das crianças e no combate à violência baseada no género. Recordo certo dia em que, após termos estado a trabalhar na Procuradoria-Geral da República daquele país, me pediu que a levasse a casa já o sol se havia posto há muito no equador. Assim fiz, tendo combinado que a recolheria para jantar, a determinada hora, no interior do bairro onde se encontrava a residir. Preocupado com a sua segurança, desloquei-me ao seu encontro cerca de dez minutos antes da hora marcada. Conduzia devagar pelas ruas mal iluminadas da capital São Tomé quando, ao desfazer uma curva, surgiu ao fundo da rua, em passo estugado, uma figura baixa e franzina, visível apenas através da luz projetada pelos faróis do meu carro. Era a Dra. Joana! Quando lhe perguntei, inquietado, se não tinha receio de andar sozinha na rua àquela hora, olhou-me com um sorriso e disse: "Acha?!"

A Dra. Joana Marques Vidal foi, entre muitas outras coisas, a primeira mulher presidente da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, diretora-adjunta do Centro de Estudos Judiciários, a primeira mulher procuradora-geral da República e presidente do Conselho Geral da Universidade do Minho.

Enquanto, ainda incrédulo, estou à porta da capela onde o seu corpo se encontra a ser velado, penso em tudo isto. Penso também no brilho constante dos seus olhos, nos passeios em São Tomé, na sua boa disposição crónica, na sua vitalidade inesgotável. Penso na última vez em que nos vimos, em Abril deste ano. Após almoçarmos em Lisboa, despedimo-nos a correr na paragem de autocarros da Praça José Fontana, ambos atrasados para os nossos compromissos, sem desconfiarmos que seria aquele o último Adeus. À porta da capela onde o seu corpo se encontra a ser velado, enquanto penso em tudo isto, vou passando os dedos pelo crachá que trouxe no bolso do casaco e que há cerca de seis anos me foi oferecido não muito longe dali. Há ocasiões em que de pouco serve trazer o passado roubado na algibeira…

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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