Morreu a ex-procuradora-geral da República Joana Marques Vidal

Magistrada de 68 anos estava em coma há um mês, após ter feito cirurgia. Foi sob a sua égide que se desencadearam processos como a Operação Marquês, Lex e Fizz. Chegou também a ser presidente da APAV.

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Joana Marques Vidal, ex-procuradora-geral da República Rui Gaudêncio
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A ex-procuradora-geral da República Joana Marques Vidal morreu esta terça-feira, aos 68 anos. A primeira mulher a ascender ao cargo de dirigente máxima do Ministério Público deixa uma forte marca no combate ao crime económico-financeiro e aos interesses dos poderosos, sem esquecer os direitos das vítimas de violência doméstica. Orgulhava-se, como dizia, de ter posto "a máquina a funcionar": "O Ministério Público não voltará atrás, não voltará ao que foi", garantia no final do seu mandato de seis anos.

A magistrada de 68 anos estava internada no Hospital de S. João, no Porto, depois de ter sido submetida a uma cirurgia na sequência de um cancro. Encontrava-se há um mês em coma induzido, tendo falecido à hora de almoço.

O corpo estará em câmara ardente amanhã das 14h até às 22h na freguesia de Pedaçães, no concelho de Águeda. As restantes cerimónias fúnebres serão em Aveiro, onde a ex-procuradora-geral da República será cremada. Numa nota publicada no site da Presidência da República, Marcelo Rebelo de Sousa revela que a visitou no Porto há duas semanas, acompanhando a sua "luta pela vida".

"Desempenhou um relevante papel na sociedade portuguesa, como jurista ilustre, com profundas preocupações sociais e funções de liderança, nomeadamente enquanto procuradora-geral da República", refere o Presidente, que a condecorou com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo no término do seu mandato como dirigente máxima do Ministério Público, em 2018. "Granjeou o respeito e o apoio de pares, subordinados e da sociedade em geral, nunca deixando de se dedicar a uma pedagogia democrática, com destaque para a participação cívica e a defesa dos direitos fundamentais, neles avultando o papel da mulher e a defesa dos mais frágeis e discriminados".

Exerceu o cargo entre 2012 e 2018, e teria aceitado ser reconduzida para um segundo mandato caso tivesse sido convidada nesse sentido. Porém, o então primeiro-ministro António Costa decidiu, juntamente com o Presidente da República, não o fazer, tendo nomeado para o cargo Lucília Gago, que cessa funções em Outubro próximo.

Foi sob a sua égide que foi desencadeada a Operação Marquês, no âmbito da qual foi preso o ex-primeiro-ministro José Sócrates, e foram igualmente constituídos arguidos Ricardo Salgado que também foi detido e o antigo ministro Manuel Pinho, nos universos BES/EDP. A que se somam como arguidos o juiz desembargador Rui Rangel, no centro da Operação Lex, e o procurador do Departamento Central de Investigação e Acção Penal Orlando Figueira, já condenado na Operação Fizz, processo relacionado com os negócios de altas figuras angolanas em Portugal.

Nalguns desses processos, os políticos neles envolvidos acabariam absolvidos, como foi o caso do ex-ministro da Administração Interna Miguel Macedo nos "vistos gold" e do ex-ministro da Defesa Azeredo Lopes no caso do assalto aos paióis de Tancos.

Numa entrevista que deu à SIC e ao semanário Expresso, quando deixou o cargo de PGR, em 2018, a magistrada revelou que soube duas horas antes do anúncio da sua sucessora que não veria o seu mandato renovado e mais tarde, uma hora depois, quem iria ser a nova titular do cargo.

Foi a ministra da Justiça Francisca van Dunem quem lhe telefonou a anunciar o nome de Lucília Gago. E reconheceu ter sido desconfortável a polémica que se gerou à volta da sua substituição, e que durou perto de dez meses: "Não me senti muito bem. Gerou-se um jogo [político] ao qual fui completamente alheia e sobre o qual não me podia pronunciar.”

Há “muito a fazer” nos crimes de violência doméstica

Admitiu também ter deixado por completar algumas tarefas que considerava importantes: “Ainda há muito a fazer nos crimes de violência doméstica.” A defesa dos chamados “direitos difusos da comunidade” — os direitos culturais ou o direito ao ambiente, por exemplo — era outra área “onde, infelizmente, o Ministério Público ainda não se conseguiu organizar para exercer as suas funções”, afirmava também.

Foi, no entanto, graças a si que o Ministério Público ganhou um braço armado para proteger o ambiente e os consumidores, o chamado Departamento Central de Contencioso do Estado e Interesses Colectivos e Difusos, faltavam escassos dois meses para deixar o lugar, por muito que a actividade destes magistrados nunca tenha sido alvo de grande divulgação. Os maus tratos aos animais também faziam parte das preocupações da ex-procuradora-geral da República. Tal como os negócios escuros do futebol: em Abril de 2018, criou uma equipa especial de três procuradoras dedicada à investigação dos processos relacionados com crimes cometidos nesta modalidade desportiva.

Solteira e sem filhos, "Joaninha", como era conhecida entre os mais próximos, vinha de uma família de juristas, com quem continuou a manter uma forte relação mesmo depois de passar a ocupar o seu gabinete na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa. Era a mais velha de seis irmãos e foi a primeira a morrer.

Especializada em direito da família e menores, chegou a dirigir a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. Quando o Governo PSD fechou duas dezenas de tribunais em todo o país, em 2014, manifestou-se contra o facto de os litígios familiares passarem a ser dirimidos demasiado longe de quem precisava de recorrer aos tribunais, especialmente quem habitava o interior.

A magistrada imprimiu ao seu mandato uma tranquilidade que nunca foi conseguida nem pelos seus antecessores, nem pela sua sucessora. Excepção a isso foi o episódio em que o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, pediu desculpa a Luanda por causa das investigações em curso na justiça portuguesa a figuras do regime, comprometendo de caminho a magistrada, ao suscitar suspeitas de que ela lhe teria passado informação privilegiada sobre os inquéritos judiciais em causa.

Depois de deixar a Procuradoria-Geral da República, Joana Marques Vidal ainda integrou o gabinete do Ministério Público no Tribunal Constitucional. Em 2019 viu arquivado o inquérito disciplinar destinado a apurar as suas eventuais responsabilidades no caso das crianças adoptadas por casais ligados à Igreja Universal do Reino de Deus nos anos 90, quando exercia funções de coordenadora dos serviços do Ministério Público no Tribunal de Família de Lisboa.

Assumindo a existência de redes de corrupção e compadrio disseminadas pelos organismos do Estado, numa entrevista que deu ao PÚBLICO, Joana Marques Vidal fazia ainda assim questão de dizer que não se podia cair na frase feita de Portugal ser um país de corruptos. Quando o Governo de António Costa lançou uma estratégia anticorrupção, em 2021, uma vez mais a magistrada não teve rebuços em dizer o que pensava dela: que era pouco ambiciosa, por deixar de fora matérias como a transparência do exercício dos cargos públicos, a fiscalização do financiamento dos partidos políticos e a contratação pública. com Sónia Trigueirão

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