“Há uma rede que utiliza o aparelho de Estado” para a corrupção
Nos últimos anos, o combate ao crime económico-financeiro tem tido resultados como nunca tínhamos visto antes. Caso Face Oculta/Vistos Gold/Caso Marquês…O que mudou?
Não mudou nada repetidamente. As circunstâncias foram-se alterando ao longo dos tempos. Hoje o MP e também os órgãos de polícia criminal têm muito mais conhecimento e experiência neste tipo de criminalidade. Foi havendo formação, mais especialização. A cooperação judiciária internacional melhorou muito. Melhoraram também alguns meios, mas ainda não os suficientes. Na investigação da criminalidade mais complexa, da competência do DCIAP-Departamento Central de Investigação e Acção Penal, existe neste momento uma outra direcção. Houve um levantamento daquilo que estava menos bem. Houve uma reorganização. Também uma aposta na especialização dos magistrados. Não são só os magistrados do DCIAP que trabalham melhor. Temos ao nível do país e ao nível dos DIAP-Departamentos de Investigação e Acção Penal distritais uma melhor capacidade de investigação. O MP está a fazer o seu caminho mas precisa de se articular melhor.
A enviada da ONU a Portugal disse que a Justiça não pode estar de joelhos e de chapeuzinho na mão à espera de recursos administrativos e financeiros. É assim que se sente perante o Governo, de mão estendida?
Não diria isso. Foi uma expressão da relatora. Mas chamou a atenção para a necessidade de termos uma maior autonomia financeira na administração dos dinheiros públicos atribuídos, neste caso, ao Ministério Público, a nível dos orçamentos da Procuradoria-Geral da República e de outros serviços do MP. Temos problemas de funcionários muito graves. Faltam 563 funcionários nos serviços do MP, temos falta de magistrados e neste momento não temos perspectiva para a existência de um curso para a formação de magistrados, que era importante, e devia iniciar este ano. Podíamos e devíamos melhorar os meios informáticos, programas relacionados com tratamento da informação e que fazem as transcrições imediatas das gravações poupariam trabalho e melhorariam a nossa capacidade de fazer investigação criminal.
Há perícias que demoram dois, três, quatro anos a iniciar…
Isso são as perícias informáticas. Mas a área económico-financeiras exige técnicos cujo pagamento não se compadece com a lógica das tabelas de preços do Ministério da Justiça. Aí precisaríamos de mais meios.
Abalar interesses instalados tem resultado em pressões?
Todos os magistrados têm uma formação aprofundada no sentido de serem rigorosos e corajosos e aterem-se aos trâmites da lei na investigação criminal.
Depreende-se das suas palavras que é preciso ter coragem...
Claro que é preciso ter coragem. E alguma capacidade de serenidade e distanciamento. Nunca fui sujeita a qualquer tipo de pressões ou a alguém que me tivesse tentado de qualquer forma influenciar. Desde que sou procuradora-geral e até mesmo como magistrada. Nunca o senti.
Os portugueses têm a percepção que a corrupção é um fenómeno generalizado que mina toda a sociedade. Ao fim de dois anos e meios de mandato como PGR qual a conclusão que tira sobre o estado do regime?
Só tenho que tirar conclusões e fazer análises que permitam lutar melhor contra os fenómenos que são da minha responsabilidade. Há uma rede que utiliza o aparelho de Estado e da Administração pública para concretizar actos ilícitos, muitos na área da corrupção. O MP, mais concretamente Portugal, nos diversos relatórios internacionais tem sido apontado estando em falta quanto à não definição de uma estratégia nacional de luta contra a corrupção. O MP, no que diz respeito à sua parte, está a fazê-lo. Há um grupo de trabalho que está a ser coordenado pelo director do DCIAP em cooperação com todos os DIAP, designadamente os distritais, que vai ter resultados não só na área da prevenção, mas também na área da formação e numa melhor organização.
Para dar mais eficácia ao combate ao crime de colarinho branco, ao crime económico, dava-lhe mais jeito o crime de enriquecimento ilícito ou mais meios?
Gostava de ter as duas. Elas não se excluem. Este crime não vai resolver o problema da corrupção mas é mais um instrumento que pode permitir uma melhor investigação. Qualquer tipo de tipificação criminal não pode por em causa a inversão do ónus da prova.
Nos últimos dias várias entidades alertaram para a ruptura iminente do sistema de justiça, devido à falta de funcionários. Que consequências tem essa falta?
Atrasa o tempo de duração média dos inquéritos, mas também todos os outros processos nos tribunais da família. Há acusações com meses à espera de serem notificadas às partes. A possibilidade de haver prescrições pode aumentar. Tem-se lutado contra as prescrições e não tem havido. Mas há esse risco. Há problemas graves e sem funcionários não vamos conseguir responder às nossas responsabilidades.
Uma pergunta que muita gente faz, até por comparação com o Processo Marquês. No caso BES por que ninguém foi preso?
As prisões preventivas obedecem a regras muito restritas. Com certeza que os titulares consideraram que não era de aplicar essa medida de coacção. O caso BES é extraordinariamente complexo. Vai exigir do Ministério Público o recurso a conhecimentos que só podem ser potenciados desde que haja uma óptima articulação na cooperação internacional e entre os órgãos de polícia criminal, os reguladores e os peritos, para ter resultados.
O PÚBLICO e a Rádio Renascença iniciam hoje uma parceria com um primeiro ciclo de entrevistas, de periodicidade mensal, com os grandes protagonistas da Justiça.