Pelo direito a ser “arrogante”: Cláudia Simões diante da justiça burguesa

De Cláudia, tenta fazer-se um exemplo: de vítima passa a acusada. O exemplo não é só direcionado a ela, mas a todo trabalhador e trabalhadora

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Arrogante”, foi uma das palavras escolhidas pela procuradora do Ministério Público Maria do Rosário Pires para definir a vítima Cláudia Simões na ocasião do julgamento do agente público Carlos Canha por violência policial. Apesar de as lesões graves em Cláudia terem sido confirmadas por médicos especialistas, a procuradora considerou suas alegações “exageradas”.

Mas, o agente Carlos Canha ainda chegou a ser condenado por ofensas e agressão, dessa vez a dois outros cidadãos na esquadra da Amadora. Contudo, nesse caso a procuradora referiu que o depoimento de uma das vítimas demonstrou “ausência de revolta” e “humildade”, como expressão de mérito.

Não é incomum a evocação da humildade, nesse caso adiciona-se a “ausência de revolta”, como medida de valor direcionada especialmente a pessoas pauperizadas ou racializadas. O que a procuradora e juíza que conduziram esses casos fizeram, nas entrelinhas, foi dizer que o “bom cidadão” pobre é aquele que aceita o lugar que a estrutura do capitalismo lhe concedeu de cativo, que eventualmente pode ser agraciado com uma “condecoração de mérito”, quando, com “ausência de revolta” e “humildade” reconhece “o seu lugar”.

A verdade é que a coragem de Cláudia Simões ofende. É intransigente porque não baixa a cabeça, assume que mordeu o policial porque não queria morrer, porque ele a estava a sufocar diante dos olhos da filha de oito anos. É insubmissa pelo simples facto de reivindicar sua humanidade diante de uma justiça que a invisibiliza, que naturaliza que um agente do Estado a descaracterize chamando-a de “puta, vaca, macaca, preta”.

A falta de habilidade, para dizer o mínimo, de alguns agentes de segurança em Portugal para lidar com situações corriqueiras no exercício da sua função tem sido cada vez mais recorrente. Pode ser observada nos mais variados escalões do funcionarismo público, do policial à procuradora e juíza, o despreparo e o uso da violência física e psíquica têm-se naturalizado na sociedade a níveis assombrosos e colocam a nu a face classista e elitista da justiça.

Da figura de Thémis, a deusa grega da justiça, que é caracterizada com olhos vendados, a segurar uma balança e uma espada, que representam respetivamente a imparcialidade, a equivalência da lei e da força para combater a injustiça, são transfigurados todos esses valores e para os anais da memória desse julgamento ficam a parcialidade, arbitrariedade, o elitismo e a injustiça.

De Cláudia, essa mulher trabalhadora, constrangida a vários níveis, tenta fazer-se um exemplo: de vítima passa a acusada. O exemplo não é só direcionado a ela, mas a todo trabalhador e trabalhadora. O exemplo de que a voz cativa obediente, agradecida é o único lugar possível, onde, eventualmente, segundo a conveniência do poder, poderão encontrar alguma benevolência.

As vozes insubmissas das “Cláudias” da nossa sociedade nos lembram Bertolt Brecht quando diz: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. Aos cansados e resignados também lembramos: não há transformação na história portuguesa que não tenha passado pela voz dita “arrogante” e intransigente daquelas/es que se revoltaram e lutaram contra a injustiça.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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