O IndieLisboa conta histórias ou manda mensagens?
Porque não ambas? Porque é um equilíbrio difícil, como provaram alguns dos filmes do primeiro fim-de-semana do festival de cinema lisboeta.
Era John Ford quem dizia que, “se queres fazer passar uma mensagem, manda um telegrama em vez de fazer um filme”? Na verdade, ninguém sabe; a expressão foi atribuída a muita gente, incluindo ao produtor Samuel Goldwyn e ao dramaturgo Moss Hart. Mas, hoje, em 2024, tudo é político; por isso, já não se trata de escolher entre “mandar uma mensagem” ou “contar uma história”, é mais uma questão de equilibrar ambas. Um equilíbrio que algumas escolhas do nosso percurso pelo primeiro fim-de-semana do IndieLisboa procuraram resolver, com resultados diferentes.
Sobreviventes, a nova longa de ficção do português José Barahona, que teve estreia (em sessão única) na secção paralela Rizoma, parte de uma premissa interessante para abordar o tema candente do esclavagismo português no século XIX: o naufrágio de um navio negreiro ao largo do Brasil, e as tensões que se criam entre os sobreviventes, senhores e escravos, brancos e negros, entendidas aqui também como relações de poder numa sociedade rígida.
É, para nós, a melhor ficção do cineasta de Alma Clandestina e Estive em Lisboa e Lembrei de Você, com um bom uso dos exteriores escarpados da costa portuguesa (apesar de o preto e branco ser demasiado “liso” para a dimensão granítica da paisagem), mas tropeça na redução das personagens a puros bonecos representativos, aos quais mesmo actores estimáveis como Anabela Moreira ou Ângelo Torres têm dificuldade em dar espessura. Sobreviventes “fala” demasiado, como uma parábola literária feita para o papel cuja verbosidade nunca se entrosa com o realismo evocativo das imagens. A mensagem acaba por se impor ao cinema.
Essa “divisão” difícil de conciliar entre a palavra e a imagem prolonga-se, de outro modo, em Malqueridas, primeira obra da chilena Tana Gilbert Fernández estreada na Semana da Crítica da última edição do Festival de Veneza e escalada para a Competição Internacional do IndieLisboa (segunda passagem no dia 30, às 21h45, no Cinema Ideal, em presença da realizadora). As imagens são todas documentais; foram feitas por mulheres detidas em estabelecimentos do sistema prisional do Chile, onde filmar no interior das cadeias é proibido, e recolhidas e resguardadas pela equipa do filme ao longo de vários anos. A história que elas ilustram é uma ficção compósita inspirada nas experiências reais vividas pelas prisioneiras; uma ficção a que uma delas, Karina Sánchez (hoje libertada), dá voz.
É um esforço meritório de cinema interveniente, que propõe um retrato por vezes angustiante do modo como o próprio sistema social que é suposto reformá-las parece condenar as detidas ao seu estatuto de cidadãs de segunda classe, e que devolve a estas mulheres a dignidade que as circunstâncias lhes parecem negar. Mas o dispositivo formal nem sempre consegue sustentar a intenção do filme: o “desfasamento” entre o que se vê e o que se ouve, apesar de assumido, só a espaços atinge a força que procura, deixando uma experiência válida mas não inteiramente conseguida.
A mais agradável surpresa deste primeiro fim-de-semana encontrámo-la pois em Monisme, do artista multimédia indonésio Riar Rizaldi, também exibido na Competição Internacional (segunda passagem no dia 30, às 16h30, no Cinema São Jorge). Apesar de a sua prática artística ser bastante diversificada, Rizaldi insere-se aqui assumidamente numa linhagem cinematográfica que conjuga ficção e documentário, filme de género e filme-ensaio, fazendo uma ponte formal com os colegas de competição Nelson Arias e Eduardo Williams, de modo menos ousado mas igualmente estimulante.
Revelado no FID Marseille de 2023, Monisme foi inteiramente rodado no sopé do vulcão indonésio Merapi, que Rizaldi filma como um “portal” performativo entre o corpo e o espírito, o homem e a natureza, numa narrativa criada em colaboração com habitantes locais. É não apenas das alterações climáticas que se fala, mas também das escolhas difíceis entre progresso e tradição, sobrevivência e morte, numa paisagem onde o dinheiro e a corrupção se impõem pelo poder.
As três “histórias” que compõem Monisme, estruturadas numa “pescadinha de rabo na boca” que parece ter lugar em simultâneo, defendem que (para citar o poeta) “isto anda tudo ligado”, que tudo tem consequências, e que enquanto não tomarmos consciência disso continuaremos na corrida para o abismo — abismo esse que é aqui a erupção do Merapi, inevitável porque a entropia é o destino de todos os seres vivos. Não é uma mensagem agradável, mas a clareza com que Riar Rizaldi a propõe, sob uma forma nitidamente cinematográfica, é refrescante.