Em que estilo quer o seu Fernão Pires?

Leve? Novo? Com idade? Fermentado em inox, barrica ou barro? Com curtimenta? Em modo de espumante, solera ou colheita tardia? Como licoroso? Como aguardente? No Tejo não falta nada.

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Na região do Tejo não faltam vinhos da casta Fernão Pires para todos os gostos Gonçalo Villaverde
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Somos do tempo em que o enólogo Virgílio Loureiro andava pelo país a chamar a atenção dos formandos de cursos de iniciação à prova para a beleza de vinhos velhos da casta Fernão Pires quando toda a gente empurrava para muito longe qualquer vinho branco com três anos de vida. Nessa altura – vamos já situar isto no final dos anos de 1990 – jurava-se que os brancos não só estavam condenados como só se aproveitariam vinhos de colheitas acabadas de fazer.

Há menos de um ano, numa conversa com Pedro Cardoso, do Solar dos Presuntos (casa que funciona como um bom barómetro), ouvimos isto: “Tenho aqui clientes que quando recomendo um branco com dois anos perguntam-me se não tenho colheitas mais recuadas.” Mas provavelmente brancos da Bairrada, do Dão ou Alvarinhos, certo? “Não, não, vinhos de qualquer região e qualquer casta. Fernão Pires incluída.”

O “Fernão Pires incluída” não deixa de ter a sua piada porque, de facto, durante muito tempo havia essa ideia de que a casta que existe em abundância na região do Tejo, Península de Setúbal, Lisboa e Bairrada (aqui como Maria Gomes) só dava para fazer vinhos de consumo rápido. E vinhos de um perfil unidireccional. Não é que não existissem vinhos de Fernão Pires com idade nas adegas e em belíssimo estado, mas ninguém lhes dava importância. Nem os próprios enólogos e produtores.

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Em 2018, a Comissão Vitivinícola Regional do Tejo (CVR) decidiu colocar na agenda da região a Fernão Pires Gonçalo Villaverde

Em 2018, a Comissão Vitivinícola Regional do Tejo (CVR) decidiu colocar na agenda da região a Fernão Pires e, em consequência, organizou uma prova de varietais da casta. Quantos surgiram na mesa? Uns 20 vinhos. Passados seis anos, o que temos? Mais de 60 referências de Fernão Pires em modo varietal e para todos os gostos, de tal forma que, depois de alguma reflexão, não nos ocorre outra casta em Portugal que tenha tanta plasticidade. Que tenha a capacidade de originar vinhos de consumo rápido e vinhos de guarda. Espumantes ou licorosos. Vinhos de curtimenta ou de ânfora. E, até, aguardentes.

CVR à parte, a Lei da Quinta (encontro mensal de enólogos e comerciais ligados ao sector do vinho na região do Tejo) também contribuiu para espalhar a boa nova dos vinhos de Fernão Pires, visto que em inúmeros encontros os produtores passaram a mostrar ou a falar das experiências que têm em adega. Quando os pares falam entre si de forma informal —​ sem lógicas de competição pelo meio —, as ideias fluem e, depois, na adega, cada um trata de inovar à sua maneira, pelo que, a nosso ver, este espírito da Lei da Quinta, decalcado da Lei da Terça, do Douro, devia espalhar-se por todas as regiões.

Martta Reis Simões, enóloga da Quinta da Alorna, prepara para início do próximo ano o lançamento de um Fernão Pires que é capaz de dar que falar pela criatividade enológica, mas prefere manter o processo em segredo. Agora, o que já não é segredo é uma aguardente jovem feita a partir de Fernão Pires que virá também alterar o padrão das aguardentes em Portugal. É intencionalmente jovem, muito aromática, com menos volume de álcool e que, bebida fresca, tem um potencial enorme na ligação gastronómica, à entrada e à saída das refeições, já para não falar do brilharete que pode fazer nas mãos de um mixologista.

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Séries Singulares, da Companhia das Lezírias, e Amphora, do Casal da Coelheira Gonçalo Villaverde

Por outro lado, na adega da quinta está uma quantidade generosa de outros vinhos licorosos que, segundo a enóloga, “vão servir para outros enólogos as trabalharem como entenderem daqui por 40 ou 50 anos. É nossa obrigação deixar património para as gerações seguintes”, quase tudo proveniente de “uma casta que permite diferentes perfis de vinhos, do início ao fim da vindima”.

Com menos de dois anos de vida, a conceito Campo do Tejo é outro desafio. Sabendo que a região produz vinhos que ainda saem para fora de região, Luís Castro, presidente da CVR, concebeu a ideia de lançar um Fernão Pires barato (entre 4 e 5,50€), com imagem padronizada, baixo teor alcoólico, de perfil fácil de gostar e ideal para ser bebido numa esplanada ou num restaurante em sistema de vinho a copo. Com apenas cinco produtores a aderirem à categoria, não parece, por enquanto, atrair a atenção dos operadores – a malta de restauração deve andar distraída , mas, em rigor, o Campo do Tejo só começou a gatinhar na semana passada.

Como vinhos mais trabalhados e recentes temos o Amphora, do Casal da Coelheira de 2023 (14€) e o Séries Singulares Fernão Pires, da Companhia das Lezírias, de 2020 (25€). O primeiro, como se imagina, é um vinho que recupera a tradição dos vinhos de talha alentejanos, só que feito numa ânfora e não numa talha. Resultou daqui um vinho bastante curioso pelo facto de se apresentar com notas de flores de laranjeira e especiarias. Na boca é um vinho notoriamente seco e com aquelas sensações de massas de fermentação. Para ligar com comida italiana é perfeito. Já o vinho da Companhia das Lezírias sofre uma maceração pelicular rápida (24 horas), coisa que lhe dá alguma complexidade aromática (com destaque para as notas apetroladas e minerais), com a boca a revelar boa estrutura e harmonia no seu conjunto.

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Nuno Falcão Rodrigues, do Casal da Coelheira, e David Ferreira, da Companhia das Lezírias, duas das empresas que trabalham o Fernão Pires Gonçalo Villaverde

Como grande região agrícola nacional, o Tejo – assim como Lisboa – foi sempre muito eficaz na sua adaptação às novas tendências de mercado. No início da modernização da viticultura nacional, os produtores plantaram um conjunto de castas nacionais e internacionais com grandes níveis de produtividade e adaptadas ao ar dos tempos. Nessa altura, como os mercados externos não conheciam as castas portugueses passou a ser uma tendência ora a presentar vinhos varietais de Syrah, de Chardonnay ou Sauvignon Blanc ou vinhos que juntavam uma casta portuguesa com uma estrangeira, de forma a dar maior segurança aos consumidores. Curiosamente, há hoje mercados estrangeiros que já não se interessam por Chardonnay ou Viognier do Tejo.

Mas se esta estratégia funcionou nos mercados externos, a verdade é que também criou um cenário de pouca identidade vincada dos vinhos do Tejo, visto que na região produzia-se quase tudo. E a questão que se colocava era que casta ou castas – podiam dar identidade e diferenciar a região do Tejo face a outras regiões. E a aposta foi Fernão Pires para brancos e Castelão para tintos.

Evidentemente que, com isso, as empresas não deixaram de trabalhar as castas nacionais mais badaladas (as Tourigas) e as castas estrangeiras, nem a CVR andou a distribuir recomendações estratégicas por aqui e por ali, que isso não é da sua responsabilidade. Mas teve a capacidade de, com os produtores, criar ruído comunicacional para a região a partir de duas castas com um perfil bastante diferenciador.

Se os consumidores já entram nos restaurantes ou nas garrafeiras a pedir um Fernão Pires ou um Castelão do Tejo, isso ainda não sabemos, até porque, em rigor, vinhos de Fernão Pires, como explicamos, existem em diferentes estilos e isso não facilita a vida a consumidores menos familiarizados com a casta. Por enquanto. Mas que hoje se fala mais do Tejo por causa de uma casta (ou duas), isso ninguém desmente.

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