Ficar sem telefone não é o tratamento detox que recomendam os especialistas

O telemóvel representa a independência e a individualidade de cada um, um instrumento de trabalho, mas também de recreio, e é uma extensão da própria pessoa.

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É preciso perceber como usam os mais novos o telemóvel EDUARDO MOSER/SANDRADESIGN
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Querida Ana,

Escrevo-te do Fim do Mundo, literalmente. E à mão. Pela janela da sala do hotel em Ushuaia, na Argentina, vejo o canal Beagle, e do outro lado montanhas gigantes cobertas de neve, que já pertencem ao Chile. A paisagem é deslumbrante, aquela de postal com que toda a gente sonha, mas não estou nem zen, nem em paz, como era suposto. E sabes porquê? Porque não tenho comigo o telemóvel. Roubaram-mo ou perdi-o, nunca saberei ao certo, no metro em Buenos Aires, o que me faz sentir a mais estúpida das criaturas. Num primeiro momento, até imaginei que era um sinal divino de que me devia desconectar do mundo, e gozar uns dias de férias desligada de tudo, com a segurança de saber que o L. tinha o dele e que vocês lhe ligariam se precisassem de alguma coisa. Afinal, ficar sem telefone não é o tratamento detox que recomendam os grandes especialistas, prometendo que nos mudará a vida?

Pois, querida filha, aqui do ponto mais a sul antes de nos transformarmos em pinguins, digo-te que não é assim. Foi preciso vir muito longe para fazer esta experiência social, mas a conclusão permite fazer cair por terra todos os preconceitos contra o “celular”. Porque sabes como me sinto? Desesperadamente dependente de um homem, sequestrada, mesmo! Não te rias, é verdade.

Pensa bem: se vos quero ligar, tenho de lhe pedir que me empreste o telefone.

Se quero ter uma daquelas nossas conversas de mãe e filhas, ou com as minhas irmãs, gasto o plafond dele (e não é ele que refila, sou eu que me sinto mal por isso) e monopolizando o telefone quando precisa dele para trabalhar.

Com as mensagens de WhatsApp idem aspas — deixo-as ou apago-as? Se as deixo, sinto-me desconfortável; se as apago, parece uma coisa meia estranha.

E, além do mais, imagina que me queria queixar, aqueles desabafos estúpidos mas que aliviam a alma?

Espera, e já imaginaste como é horrível ter de pedir a outra pessoa, 20 vezes por passeio, “por favor, podes fotografar aquela árvore, que é tão bonita?”, ou justificar que imagens vamos mandar a quem? E, convenhamos, como posso ver todas estas maravilhas, ouvir todas estas histórias, sem as partilhar convosco?

Sei que estes lamentos parecem todos parvos, mas não são. O telemóvel representa a independência e a individualidade de cada um, um instrumento de trabalho, mas também de recreio, e é uma extensão da própria pessoa.

Sabes, quando era pequena, só o avô é que trabalhava e ganhava, e a minha mãe tinha de lhe pedir dinheiro para pagar a conta da mercearia, as propinas das nossas escolas e, basicamente, para tudo. E o meu pai, que devia sentir a corda na garganta com oito filhos a cargo, de vez em quando refilava, dizia aquelas frases “Outra vez?”, ou “Mas não podemos comprar menos bananas?”, protestos desses, e eu ouvia e jurava a mim mesma que nunca iria estar numa situação de dependência como aquela. É seguramente muito duro, ainda hoje, para quem fica em casa com os filhos sem rendimentos próprios, seja homem ou mulher, por muito que tudo tenha sido combinado e ajustado. É por isso que confesso que essa seria uma razão forte para ter imensa dificuldade em não trabalhar.

Talvez sejam todos esses sentimentos que regressam aqui no meio deste verdadeiro paraíso gelado.

Vou pôr a carta no correio, e quando a receberes passa-a ao computador e responde-me. Obrigada por estares aí desse lado, e me permitires estas birras politicamente incorretas. E ah, uma última coisa – há de facto uma vantagem em ter perdido o telemóvel que é libertar-me do medo omnipresente de o perder. Já está, já está.


Querida Mãe,

Que ode ao telemóvel! Acho que merecia ser um anúncio daqueles comoventes de Natal! Aceitam-se patrocínios.

Agora a sério, acho mesmo refrescante ler a sua carta porque o que não falta são artigos/posts/textos a demonizar o telemóvel. E percebo porquê, porque a dependência dos telemóveis é assustadora na medida em que nos envolve tanto que passa a ser, como a mãe escreve, uma extensão da nossa própria mente, que tal como o cérebro exige constante estímulo. Na verdade, todos sabemos tudo sobre os efeitos secundários noviços que pode ter, mas não podemos fugir de todas as vantagens, não podemos olhar para o telemóvel como um aparelho que se limita a cumprir uma única função, mas antes como uma plataforma que pode ser utilizada de variadíssimas formas. Boas e más. E essa consciência é ainda mais importante quando estamos no papel de “reguladores” do uso que lhe dão os nossos filhos. Não podemos começar qualquer tipo de discussão com eles sobre limites, se não percebermos antes como é que o estão a usar. É a parte lúdica que os prende? É a segurança e autonomia que lhes dá? É a conexão com os amigos? Ou é a ansiedade que cria a dependência, porque é mais fácil evitar os sentimentos? Só depois disso podemos decidir como ajudá-los a aprender a autoconhecerem-se e a auto-regularem-se.

Aqui para nós, não me importava nada que me mandasse uns dias a esse Paraíso, para ver se as minhas conclusões são parecidas com as suas, afinal as “experiências sociais” não se podem ficar só por um caso. Fico à espera do bilhete de avião.

Beijinhos!

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