Elisa Ferreira: “Abrir a discussão sobre tropas na Ucrânia vai destruir a coesão interna na UE”
Elisa Ferreira, comissária europeia para as Reformas e Coesão, diz que dramatização das contas públicas feitas pela AD não passa “de combate político” e não impressiona Bruxelas.
Em entrevista ao PÚBLICO/Renascença, a comissária europeia pede que os portugueses demonstrem o seu europeísmo nas próximas eleições para o Parlamento Europeu e deixa alertas sobre o futuro e as ameaças ao projecto europeu. Sobre António Costa à frente do Conselho Europeu, diz que depende mais dele do que dos Estados-membros e critica o PS por ter feito uma limpeza total da lista de candidatos a eurodeputados.
Há uma semana, o ministro da Presidência, António Leitão Amaro, dizia aos jornalistas no briefing do Conselho de Ministros que os fundos europeus estão "extraordinariamente atrasados". Até que ponto é que a execução do PRR, por exemplo, está atrasada?
Os fundos estruturais normais são o Fundo de Coesão, o FEDER, etc., que as pessoas conhecem muito bem e há muitos anos. O PRR é um instrumento absolutamente extraordinário que foi criado para fazer uma política anticíclica. Os fundos de longo prazo que fazem o desenvolvimento regional são programados em períodos de sete anos. Agora estamos a fazer os últimos pagamentos do período que acabou em 2020. Nesse, Portugal está com 98% de execução, muito acima da média. Portugal também está acima da média na execução do PRR.
A que é que o ministro se estaria a referir?
Não sei. Talvez ao período 2021-2027. Aí Portugal está relativamente próximo da média em termos de execução, mas, como a estrutura de gestão desses fundos estruturais foi utilizada em grande medida para gerir o PRR, é evidente que houve algum atraso. Esse atraso pode ser facilmente recuperado.
Diria que estas acusações do Governo da AD fazem parte do combate político?
Não acho útil polemizar em cima de fundos estruturais. Aquilo que me parece importante é que nós continuemos a seleccionar o que é essencial para o país e que nos concentremos na qualidade dos projectos.
A execução total do PRR até 2026 é possível ou as metas são muito apertadas e o mais provável é, se necessário, uma extensão no calendário?
Todos os países da União Europeia, ou quase todos, pedem extensões dos prazos. Mas para o PRR é preciso alterações legislativas, uma que é votada por maioria, outra que é votada por unanimidade. Ora, alguns países estão renitentes. Depois das eleições europeias, veremos se, de facto, não obstaculizarão uma extensão de prazo.
Há pouco tempo foi aberto um inquérito contra Manuel Serrão e Júlio Magalhães por suspeita de fraude com fundos europeus. Isto preocupa a Comissão Europeia? É um caso isolado ou o risco de fraude é real e tende a ser sistemático?
É evidente que isso preocupa imenso a Comissão. Um euro que seja mal gasto é um problema. Quando temos um caso, uma dúvida relativamente ao modo como está a ser gerido um determinado programa ou um determinado projecto, imediatamente equacionamos dizer ao país "Isso sai do financiamento europeu", e o país normalmente tem outros que não levantam problemas nem dúvidas e que pode introduzir nesse envelope financeiro. Nos casos em que o projecto já foi terminado, os reembolsos foram feitos, pode haver direito a um retorno do dinheiro à Comissão Europeia.
É este o caso?
Não, esse caso ainda está a abrir. Gostava de sublinhar que, quando fechamos a gestão de um quadro, temos taxas de fraude abaixo de 1%.
Como é que tem visto esta polémica entre o Governo e o PS sobre se há excedente orçamental ou défice? Para Bruxelas, qual é a versão que vale?
Os dados que são enviados são trabalhados, são conferidos e validados por métodos absolutamente normais. Não sei os detalhes da polémica.
Não ouviu a comunicação do ministro das Finanças?
Não devo antecipar um juízo que ocorrerá em devido tempo por parte das entidades que na Comissão Europeia fazem o acompanhamento das contas, mas há métodos absolutamente estabilizados e rotinados que permitem termos uma confiança total nos dados que são enviados. Até agora não tenho notícia nenhuma de que tenha havido alguma crítica ou comentário sobre os dados que foram oportunamente enviados.
Portugal ficou mal visto no exterior devido à dramatização sobre as contas feita pelo ministro das Finanças?
A União Europeia está habituada aos combates de tipo partidário. É evidente que outras dimensões em Portugal tiveram muito mais impacto do que este aspecto concreto. Estou a falar da demissão do primeiro-ministro. Foi uma surpresa todo o processo e, sobretudo, a falta de percepção do que é que tinha acontecido e porquê.
Mas há um novo Governo que está a pôr em dúvida as contas.
As contas têm de ser validadas relativamente a determinados momentos históricos e, a seguir, passa-se para outro momento histórico. Isso faz parte do combate político que é habitual. Haverá sempre a verificação por parte das instituições e a clarificação se, de facto, há despesas e receitas que estão mal imputadas. Não me parece que isso vá acontecer. Em Bruxelas estamos bastante habituados a situações permanentes de combate político em todos os países. Faz parte da democracia. Depois, a seguir, é preciso limpar a poeira que se levanta e ver o que é que fica. E o que fica é o que fica registado.
O que conta para Bruxelas são as contas no final do ano, não é agora, é isso?
São as contas no final do ano e, portanto, veremos se há alguma base para haver uma correcção, ou o que seja, dos valores de apuramentos finais de ano. Normalmente, há critérios muito claros sobre o que é que se deve registar para fazer os apuramentos de final do ano.
Portugal, com a situação como está, com um Governo de maioria relativa, é visto com preocupação por parte de Bruxelas?
É evidente que há um acréscimo de instabilidade relativamente a um dos raros governos que tinham maioria absoluta na União Europeia. Não se pode dizer que não haja uma certa percepção de alguma instabilidade.
Para um país que, como Portugal, tem uma trajectória a cumprir em termos de convergência, há uma certa expectativa de que os partidos democráticos saibam encontrar, independentemente do debate político que é necessário, linhas de convergência naquilo que são os factores essenciais.
Aquilo que me parece importante, nomeadamente nas questões de política de coesão, é que a alternância governativa não gere algo que, em alguns países, não costumava acontecer em Portugal, e que é muito prejudicial. Que é alterar projectos de longo prazo que estão previstos e que, para serem cumpridos, não podem estar a ser metidos e retirados dos envelopes de financiamento.
E já houve algum sinal da parte do Governo português nesse sentido?
Tanto quanto sei, não. É importante o país ter algum consenso partilhado que garanta alguma estabilidade no núcleo duro de projectos. E aí é que eu acho que era importante que não houvesse uma instabilidade.
Mas teme que, dada a tensão que existe actualmente entre PS e AD, que essas duas forças políticas não se consigam entender para as questões de fundos europeus, ou seja, que um consenso não seja possível?
Acho que neste momento o Governo e o partido liderante da oposição são dois partidos democráticos, são dois partidos com grande tradição em Portugal, dentro do espectro democrático, e, portanto, são partidos que conhecem bem todas as oportunidades e todos os riscos de uma presença europeia forte.
Estamos num período muito crítico, muito perigoso – a Europa como espaço de referência em termos de democracia, em termos de liberdade, em termos de desenvolvimento económico está ameaçada. Os ataques materiais a este espaço estão a ser mais materiais do que alguma vez foram, mas também há estratégias para minar internamente, dentro da União Europeia, estes princípios democráticos, estimulando tudo quanto são descontentamentos, inveja, o que se reflecte no reforço dos partidos antidemocráticos, antieuropeístas e, de facto, isso é um perigo.
Defende que AD e PS também se entendam para o orçamento?
Não devo pronunciar-me sobre política interna. Mas não se vai aqui criar um unanimismo em que não há oposição, tem de haver oposição, tem de haver crítica, tem de haver discussão. Temos de ter uma ideia clara do que é para divergir e de quais são aqueles pontos em que a amplitude do país tem de gerar alguma consistência de projectos.
Por que pasta na Comissão Europeia deve o Governo português lutar no próximo mandato, a da Coesão outra vez?
Há dois aspectos importantes a sublinhar. Um é que quem for exercer a função de comissário tem de ir preparado para muito trabalho físico, muita resistência, muita capacidade de defender os interesses europeus também numa perspectiva nacional. Um comissário não é um agente do país, mas é evidente que um comissário transmite toda a experiência, que é também uma experiência europeia, da sua vivência nacional.
Mas a comissão está controlada pelo Parlamento. É preciso discutir os mandatos e em que comités é que os deputados que vão ser eleitos vão trabalhar. Os deputados portugueses, neste mandato, foram muitíssimo relevantes.
Como é que viu esta renovação total da lista do PS?
Vai exigir um grande esforço aos que estão agora a entrar. Os deputados que saem, da área da economia, com quem eu trabalhei mais, como o Pedro Marques, Margarida Marques, Pedro Silva Pereira, subiram a um nível de credibilidade tal que estiveram a influenciar a agenda europeia, o seu grupo político. Pedro Marques chegou a vice-presidente dos socialistas europeus.
Ficou surpreendida com esta decisão da direcção do PS?
Tenho de confessar: fiquei um bocadinho surpreendida com a dimensão da renovação.
E foi injusto para algumas pessoas?
Não vou julgar porque não estou suficientemente por dentro. Agora, sabemos o que é que vai estar em causa agora, é o orçamento europeu porque há um alargamento em curso, há novas tensões e novos pedidos de utilização de dinheiro, ou novas necessidades, nomeadamente a política de defesa.
E estas novas equipas têm de pedalar mais...
Têm de pedalar muito. E têm de, quando lá chegarem, escolher e lutar para terem lugar nos comités. Para mim, o comité Econ é muitíssimo importante. Outro aspecto é a política de coesão.
Em relação a António Costa, de quem se continuou a falar como uma escolha para o Conselho Europeu, é para si uma escolha natural? Tem hipóteses?
É-me difícil neste momento saber se tem ou não. Que ele tinha todas as hipóteses, que havia um consenso alargadíssimo, tinha. Isso eu posso confirmar ao nível de todos os comissários que falavam quase como um dado adquirido que António Costa seria o próprio presidente do Conselho. Havia, inclusivamente, de outras forças políticas não socialistas, um consenso.
E agora, com este processo?
O problema é do próprio António Costa. Ele tem muito aquela postura de dizer "eu não posso contaminar o lugar porque eu respeito as instituições". Acho que o problema é mais dele do que propriamente do outro lado.
Para Bruxelas, a questão judicial de António Costa não é um problema?
Nesta fase, não é. Seria um problema se fosse acusado. Neste momento, como o assunto é muito difícil de explicar, está toda a gente à espera que, mais uma vez, a água baixe e se perceba que matéria é que há.
Estamos a um mês das eleições europeias. O equilíbrio de forças entre socialistas, liberais e PPE pode ser quebrado pela extrema-direita nestas eleições?
Esta foi uma novidade recente, haver aqui um partido a crescer e com uma agenda que está sempre em mutação.
Mas, como o Chega, na Europa há vários partidos irmãos.
Sim. Há uma tendência. Muita gente em Portugal, em determinado momento, quando viu alguma instabilidade do sistema político, quis dar um cartão amarelo. Encontro muito voto, talvez mais explicado por essa vontade de fazer uma crítica do que propriamente de encontrar no Chega uma alternativa. Uma característica destes partidos é que se alimentam de todas as críticas, críticas porque os salários não chegam, ou críticas porque não há controlo das contas públicas, ou críticas porque o dinheiro vai para fraudes.
O crescimento da extrema-direita ameaça o projecto europeu?
Imenso, por isso tenho a esperança de que os portugueses, que são um povo antigo, são um povo maduro, na hora da verdade e na hora do voto, primeiro vão votar e, em segundo lugar, votem a favor da Europa. A Europa não é perfeita. Isto não é tudo perfeito. Agora, não vamos atirar, como dizem os ingleses, a criança com a água do banho. Vamos melhorar aquilo que houver para melhorar, mas não vamos comprar discursos destrutivos que não oferecem nada de concreto e que seja viável como alternativa. Temos de pôr os pés no chão, e de perceber a importância estratégica de estarmos juntos e de corrigir o que há para corrigir.
Como é que vê a sugestão de Macron de enviar tropas da UE para a Ucrânia. Será inevitável?
Eu preferia não abrir essa discussão neste momento porque é uma discussão que vai destruir a coesão interna na União Europeia e temos de nos manter unidos. Essa discussão faz sentido a níveis mais restritos, e não a níveis públicos. Neste momento, aquilo que me parece que é importante é a Europa abordar seriamente a questão de uma defesa comum. Que haja, pelo menos, uma coordenação de todas as forças de defesa dos diferentes países-membros para haver, por exemplo, um normativo para os equipamentos bélicos.