A felicidade não está ao alcance de um copo, nem de uma ganza

Parece que é preciso estar a cair de bêbado, ou high em qualquer coisa, para achar graça às piadas dos outros, para gostar de estar sentado numa praia numa noite de verão, para tudo, na verdade.

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A imagem é do filme “Another Round” SANDRADESIGN
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Ana,

Explica-me como é que os nossos adolescentes não hão-de beber e fumar ganzas, ou tomar outras substâncias quaisquer, se não há uma canção, um filme, um episódio de uma série em que o cantor ou ator não proponha fazer tudo isso como solução para todos os problemas? Está farto do emprego? Vá beber um copo! Está triste e cansada do seu marido? Sente-se na cozinha e enrole um charro. O seu namorado deixou-a? Esqueça, isso passa com uma bebedeira! Tem medo de sair à rua? Então dê duas passas primeiro.

Espera, é mais grave do que isso. Se fosse bengala só para os momentos maus, já era péssimo, mas é pior do que péssimo, porque a receita é igual para os momentos bons, apresentado como o ingrediente essencial para que qualquer coisa seja divertida. É preciso estar a cair de bêbado, ou high em qualquer coisa, para achar graça às piadas dos outros, para gostar de estar sentado numa praia numa noite de verão, para tudo, na verdade.

Já reparaste que o amor se encontra invariavelmente ao balcão de um bar, entre shots e rodadas, e depois de percorridas as tasquinhas, acabam em casa de um ou de outro, de copo sempre na mão, como parte indispensável da estética amorosa, copo que os segue para a varanda onde vêem nascer o sol, e acaba na mesa de cabeceira da cama onde fazem amor, bebendo uns golinhos entre beijos, como se sóbrios nada daquilo tivesse graça?

E as ressacas, e a queixa da ressaca, são assunto de gabarolice. No escritório, numa sala de tribunal, murmurado ao ouvido do parceiro advogado antes de um julgamento, na esquadra, na escola de condução, na universidade, na escola, fica-se mais bem visto caso se se disser que o atraso ou a distração se deveu a uma noite de farra.

Ana, não é comentário de avó velha, é de avó preocupada. É que isto tudo é-lhes servido em doses massivas. Agora que penso nisso, lembro-me que escreveste uma música acerca disto — na resposta a esta minha carta, manda-me a letra por favor, para me lembrar. E já agora a esperança de um antídoto — vocês viram-me a ficar muito bem-disposta com os meus amigos, só à base de Bongo de laranja e Coca-Cola — serviu-vos de lição?


Querida Mãe,

É verdade! Há uma “romantização” do álcool e das “drogas leves”, e é difícil não associar esses símbolos a algo cool. Funciona na publicidade, funciona ainda melhor quando não achamos que nos estão a vender qualquer coisa. Por isso, parece-me uma preocupação válida. O antídoto, acho eu, é exatamente o seu “bongo”. É os nossos filhos verem-nos a divertir-nos muito sem substâncias. É verem-nos ter prazer em estados lúcidos.

Paralelamente há outro trabalho a fazer: olhar para a saúde mental com seriedade e prudência. Ajudar os nossos filhos a conhecer e identificar as emoções, e os seus mecanismos de defesa. A perceber que sim, o copo ou o cigarro podem dar uma falsa sensação de conforto e de apaziguamento. Que sim, a ganza pode dar uma falsa sensação de acalmar a ansiedade (tornando-a depois pior) e que é preciso sempre olhar para a raiz da ansiedade, em vez de a mascarar.

Não é um trabalho de uma conversa antes de o adolescente sair à noite, mas de todos os dias desde que são pequenos.

E sim! Fiz uma música sobre isto! Pode re-ouvi-la aqui.


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. As autoras escrevem segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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