Mais jovens e mulheres nos Alcoólicos Anónimos: “Comecei a beber para combater a solidão”
Entram nas reuniões dos Alcoólicos Anónimos mais jovens e mais mulheres. Marta e Rita espelham esta realidade: são jovens, alcoólicas e já em recuperação.
É numa reunião de Alcoólicos Anónimos aberta a familiares e amigos que Rita encontra pela primeira vez Marta (nomes fictícios). As duas são alcoólicas anónimas em recuperação e, ao contrário do que um dia pensaram, vivem sem o álcool. Rita tem 23 anos e Marta aproxima-se dos 30. Têm o alcoolismo e a sobriedade em comum, são do Porto, e somam-se ao número crescente de jovens que fazem parte dos Alcoólicos Anónimos em Portugal.
Rita começou a beber aos 17 anos, sozinha em casa, quando “todos tinham ido dormir”. “Estava a sofrer muito emocionalmente”, conta. Pensou: “Os adultos bebem isto e ficam contentes. Será que resulta comigo?” Resultou. “Foi espectacular”, recorda.
Passou a viver “uma vida dupla”. Bebia à noite — vinho — todos os dias. Depois, acordava de manhã e ia para a escola. “Pensava de facto que não bebia.” Este consumo estendeu-se às sextas-feiras, aos fins-de-semana e aos feriados. Mais tarde, a todo o tipo de bebidas. Rita ficou deslumbrada ao perceber o quanto se podia divertir socialmente “com aquela coisa que já adorava quando estava sozinha”. Por isso, aproveitava qualquer ocasião especial para “ficar estupidamente embriagada” à frente de todos. E era esta a ingestão de álcool observada pelos pais e amigos. “Viam que eu bebia muito, sim, mas normalizaram, porque era jovem e era de vez em quando”, explica, quase um ano depois da primeira reunião de Alcoólicos Anónimos (AA).
O médico e subdirector do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Adictivos e Dependências (SICAD), Manuel Cardoso, faz notar que, em Portugal, entre os mais novos, verifica-se “um consumo global de álcool extremamente alto, tanto em rapazes como em raparigas”, registando-se um aumento da ingestão de álcool por parte das jovens.
Segundo os dados partilhados pelo SICAD esta segunda-feira, o consumo binge e a embriaguez entre os jovens atingiu o valor mais alto em 2022, desde 2015, e a idade média de início dos consumos diminuiu de 17 e 18 anos para 16. Os problemas desencadeados pelo consumo de álcool, como as situações de mal-estar, relações sexuais sem preservativo, os problemas de rendimento na escola ou no trabalho, os problemas com comportamentos em casa, os problemas financeiros, e os actos de violência também aumentaram nos últimos dois anos.
A aceitação do consumo por parte da sociedade justifica os problemas de consumo entre os jovens, explica Manuel Cardoso. “A comunidade é demasiado tolerante com os consumos e, depois, é intolerante e estigmatizante com os problemas”, acrescenta.
“A única coisa que sabia fazer era sair à noite e beber sozinha”
Marta experimentou a primeira bebida mais cedo, aos 15. Também andava no secundário e, apesar de não gostar de beber álcool, decidiu forçar este consumo. Primeiro era cerveja e sangria, depois shots de absinto. As “coisas começaram a piorar”, quando aos 21 anos decidiu emigrar. “Nos primeiros meses, [como] não conhecia ninguém, a única coisa que sabia fazer era sair à noite e beber sozinha em bares”, diz. “Aí, comecei a beber para combater a solidão.”
Durante a pandemia, Marta regressou a Portugal. “Desconfiaram que estava a beber de mais", mas desculparam-na porque "tinha acabado uma relação e estava bastante destroçada." Quando voltou a sair de casa dos pais, percebeu “que tinha descambado”: a primeira coisa que fazia logo que acordava era beber. Marta sabia que bebia para conseguir enfrentar o dia-a-dia. O sabor não era o que lhe interessava, mas a “eficácia” da bebida. “Qualquer coisa que tivesse efeito fazia o serviço”, acrescenta. “Para conseguir funcionar minimamente”, teve de ajustar o seu consumo aos locais em que se encontrava. No trabalho, num bar, recorria ao vinho e à cerveja. Em casa, tinha as bebidas espirituosas.
Embora a situação estivesse “descarrilada”, o consumo não abrandou e começou a centrar-se em casa, longe de olhares indesejados. E se os amigos não davam importância, por também terem estilos de vida idênticos, a família só se apercebeu da dimensão da doença quando as consequências do consumo excederam o seu controlo.
Uma noite, Marta apareceu alcoolizada no bar onde trabalhava e foi despedida. Não demorou a arranjar uma nova posição. Continuou a beber e envolveu-se “num relacionamento tóxico”. “A relação terminou e vi-me a ficar sem o trabalho, porque descobriram que ia trabalhar sob efeito de álcool. Apareci no trabalho com uma faca, fui levada para uma ala psiquiátrica e fiquei fechada, sem consumir, durante uma semana. [Foi nessa altura que] os meus pais vieram buscar-me para ir para Portugal para cuidarem de mim”.
No internamento “salvaram-me a vida”
Por esta altura, ainda sem terminar o secundário, o álcool era um problema grave também na vida de Rita. A boa disposição deu lugar ao transtorno e tornou-se mais violenta, irascível, extremamente manipuladora, insensível aos sentimentos dos que mais a amam, enumera. Rita deixou de se dar ao trabalho de esconder os seus estados de embriaguez.
Os pais “tentaram de tudo”, desde limitar as saídas à noite, deixar de beber vinho ao jantar e trancar as bebidas de casa. Iam buscar a filha onde quer que estivesse. Mas Rita “arranjava as suas manhas” e acabava “sempre por ter o que queria”. “Não conseguiam ter mão em mim, porque eu adoptava atitudes violentas e autodestrutivas”, conclui. Em quatro anos, tentaram interná-la por duas vezes. Rita dizia sempre que conseguia largar o álcool sozinha, mas à terceira vez aceitou que precisava de ajuda. Nesse momento, bebia álcool etílico.
A “gota de água” foi uma discussão. Rita, sob o efeito de álcool, desentendeu-se com o irmão. Apesar de não o querer ameaçar, bradava com uma faca na mão. Chegou mesmo a atirá-la. No dia seguinte, o pai, que presenciou a cena, explicou-lhe que não haveria volta a dar. Rita ficou internada oito meses numa comunidade terapêutica. “Lá, salvaram-me a vida.”
De volta a casa, as duas jovens foram encaminhadas para as reuniões de Alcoólicos Anónimos (AA). Segundo Vítor (nome fictício), 54 anos, porta-voz da comunidade no Porto, o perfil dos que participam nas reuniões “está a mudar”: “Já nos começam a chegar mais companheiros com idades iguais ou inferiores aos 30 anos, já formados e informados e com um estatuto social médio-alto.” Vítor aponta a acessibilidade do álcool como potenciadora de consumos mais prematuros e vê também na partilha de informação sobre a doença do alcoolismo e consequente consciencialização o motivo pelo qual pessoas mais jovens se juntam às salas.
Além dos jovens, têm chegado também cada vez mais mulheres a estes grupos de auto-ajuda, um reflexo das conclusões do mais recente relatório do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Adictivos e Dependências (SICAD). Para Vítor, isto acontece porque o “tabu social estúpido de que é feio as mulheres beberem” tem sido quebrado e, por isso, as mulheres passam a beber mais abertamente.
Alcoólicos em recuperação praticam o “só por hoje”
Qualquer pessoa pode participar numa reunião de Alcoólicos Anónimos (AA), do Norte ao Sul do país, nas ilhas ou online. Tal como indica o site dos AA, “o único requisito para ser membro é o desejo de parar de beber”.
“O álcool é manhoso, progressivo e fatal. Quem bebe de forma recorrente – sem controlo e até não conseguir mais — vai acabar por sentir consequências na sua saúde, na vida pessoal, profissional e social. Mais tarde ou mais cedo, vão acontecer os erros, as perdas, as rejeições, os danos em si e nos outros”, descreve Vítor. E é por isso que o alcoólico que chega às salas já está maioritariamente sozinho: com o emprego por um fio, sem família e com amigos a afastarem-se.
Apesar disso, só quando é confrontado com estas complicações é que “reconhece que a vida não pode ser assim” e decide entregar-se e pedir ajuda. Nestes encontros, o anonimato é essencial, porque contam-se coisas que nem os próprios familiares sabem. “O que é dito ali morre ali e nunca mais é comentado”, diz Vítor. Não são feitos registos de presença e a partilha de dados individuais é limitada. “Não têm de saber onde moro, de onde venho, o meu curso, qual é o meu apelido e os sítios que frequento”, assegura.
As reuniões são dirigidas por um elemento do grupo e há sempre um convidado que vai falar sobre o tema principal do encontro. Além disso, dá-se espaço para todos falarem, mas não há diálogos, não há feedbacks, nem conselhos. “Todos estão ali para falar de si e sobre si, se quiserem”, afirma.
Além de seguirem os famosos 12 passos e as 12 tradições, os membros do AA praticam diariamente o “só por hoje”. “Dizemos que, por hoje, eu não vou beber e que amanhã logo verei”, explica Vítor. E é assim que tentam controlar uma "doença sem cura, mas com tratamento".
Depois de começarem as reuniões, Rita continuou sem beber, Marta não. “Estava numa fase tão avançada que, se não bebesse mesmo durante a hora e meia das reuniões, vinham os sintomas da ressaca: tremores, suores e ansiedade. Então, não conseguia aguentar uma reunião.”
Sem o seu conhecimento prévio, os pais internaram-na numa clínica de tratamento. Passou lá três meses. Regressou a casa e teve uma recaída. Marta já tinha decidido que “ia [voltar a] beber”, só não sabia quando. Somaram-se mais três meses em tratamento. Em Janeiro, saiu da clínica, voltou às reuniões e não bebe há quatro meses. Entretanto, voltou para o estrangeiro e continua a participar em reuniões sempre que pode e precisa. Por vezes, vai a três encontros por dia, noutra língua.
Rita entrou na universidade e já não bebe há quase dois anos. A chave foi o “não-julgamento”. “[Nas reuniões] uma pessoa não se sente tão sozinha, tão diferente ou tão má”, conta. Rita pode lá chegar, ao final do dia, partilhar tudo o que quiser, mesmo a “maior barbaridade” do mundo, e ainda assim contar com compreensão sem juízos de valor.
“O álcool ainda não é uma preocupação”
A maior parte dos jovens que chegam às consultas especializadas em tratamento dos comportamentos adictivos e dependências é referenciada por entidades externas, tribunais, centros de saúde, escolas, entre outros. No entanto, não tendem a ser sinalizados por causa do seu consumo de álcool, mas por outros motivos, como o consumo de drogas, e só depois, durante as consultas, é que percebem que os jovens têm consumos problemáticos, adianta a psicóloga clínica da Divisão de Intervenção nos Comportamentos Adictivos e nas Dependências (DICAD), Andreia Ribeiro. “A verdade é que o álcool não é ainda uma preocupação quando os jovens são avaliados.”
Apesar do alcoólico nem sempre ter consciência do problema, Manuel Cardoso alerta para três sinais associados ao alcoolismo: a constante necessidade de consumo, as falhas ao nível dos compromissos e a nota de um terceiro a chamar a atenção para a ingestão problemática de álcool. “Normalmente, é o outro que identifica. Alguém que acha que está a ter um problema numa fase inicial é uma sorte”, revela. “É por isso que a aplicação de testes, como o AUDIT (que pode ser feito online), é tão importante para que os jovens identifiquem os seus padrões de consumo.” É possível agendar uma consulta através do site do SICAD.
Tanto Marta como Rita conseguem identificar pessoas à sua volta com a mesma doença. “Honestamente, o que tenho a dizer é: ‘Não gastem a vida.’ Eu sei que é um instinto muito natural, experimentar, testar os limites, por causa do risco, da adrenalina, mas não vale a pena”, refere Rita.
“Quando uma pessoa entra em recuperação, encontra a esperança de uma nova vida”, frisa Marta. Sim, com o consumo, “a vida torna-se num inferno” e “uma pessoa parece que não consegue viver nem com [álcool] nem sem [ele]. Consegue-se viver com esta doença. Há um futuro”.
Embora todo o processo seja intenso, difícil e assustador, Rita lembra que, agora em recuperação, é que tem mesmo toda a sua vida pela frente. Apesar de o medo de ter uma recaída ser frequente, vive dia após dia segurando-se nos aspectos “mais simples” da vida para evitar a bebida: ora na família, ora nos gatos, nas séries, nos trabalhos, nos compromissos, na paz das reuniões.
Marta questiona-se todos os dias: “Será que esta decisão é a melhor para mim?” E a resposta anda de mão dada com aquilo que não quer fazer – desapontar a família e amigos. Depois, amanhã, pensa no resto.
Texto editado por Renata Monteiro