Mais jovens e mulheres nos Alcoólicos Anónimos: “Comecei a beber para combater a solidão”

Entram nas reuniões dos Alcoólicos Anónimos mais jovens e mais mulheres. Marta e Rita espelham esta realidade: são jovens, alcoólicas e já em recuperação.

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O consumo binge e a embriaguez entre os jovens atingiu o valor mais alto em 2022, desde 2015 Fernando Veludo/NFACTOS
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É numa reunião de Alcoólicos Anónimos aberta a familiares e amigos que Rita encontra pela primeira vez Marta (nomes fictícios). As duas são alcoólicas anónimas em recuperação e, ao contrário do que um dia pensaram, vivem sem o álcool. Rita tem 23 anos e Marta aproxima-se dos 30. Têm o alcoolismo e a sobriedade em comum, são do Porto, e somam-se ao número crescente de jovens que fazem parte dos Alcoólicos Anónimos em Portugal.

Rita começou a beber aos 17 anos, sozinha em casa, quando “todos tinham ido dormir”. “Estava a sofrer muito emocionalmente”, conta. Pensou: “Os adultos bebem isto e ficam contentes. Será que resulta comigo?” Resultou. “Foi espectacular”, recorda.

Passou a viver “uma vida dupla”. Bebia à noite — vinho — todos os dias. Depois, acordava de manhã e ia para a escola. “Pensava de facto que não bebia.” Este consumo estendeu-se às sextas-feiras, aos fins-de-semana e aos feriados. Mais tarde, a todo o tipo de bebidas. Rita ficou deslumbrada ao perceber o quanto se podia divertir socialmente “com aquela coisa que já adorava quando estava sozinha”. Por isso, aproveitava qualquer ocasião especial para “ficar estupidamente embriagada” à frente de todos. E era esta a ingestão de álcool observada pelos pais e amigos. “Viam que eu bebia muito, sim, mas normalizaram, porque era jovem e era de vez em quando”, explica, quase um ano depois da primeira reunião de Alcoólicos Anónimos (AA).

O médico e subdirector do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Adictivos e Dependências (SICAD), Manuel Cardoso, faz notar que, em Portugal, entre os mais novos, verifica-se “um consumo global de álcool extremamente alto, tanto em rapazes como em raparigas”, registando-se um aumento da ingestão de álcool por parte das jovens.

Segundo os dados partilhados pelo SICAD esta segunda-feira, o consumo binge e a embriaguez entre os jovens atingiu o valor mais alto em 2022, desde 2015, e a idade média de início dos consumos diminuiu de 17 e 18 anos para 16. Os problemas desencadeados pelo consumo de álcool, como as situações de mal-estar, relações sexuais sem preservativo, os problemas de rendimento na escola ou no trabalho, os problemas com comportamentos em casa, os problemas financeiros, e os actos de violência também aumentaram nos últimos dois anos.

A aceitação do consumo por parte da sociedade justifica os problemas de consumo entre os jovens, explica Manuel Cardoso. “A comunidade é demasiado tolerante com os consumos e, depois, é intolerante e estigmatizante com os problemas”, acrescenta.

“A única coisa que sabia fazer era sair à noite e beber sozinha”

Marta experimentou a primeira bebida mais cedo, aos 15. Também andava no secundário e, apesar de não gostar de beber álcool, decidiu forçar este consumo. Primeiro era cerveja e sangria, depois shots de absinto. As “coisas começaram a piorar”, quando aos 21 anos decidiu emigrar. “Nos primeiros meses, [como] não conhecia ninguém, a única coisa que sabia fazer era sair à noite e beber sozinha em bares”, diz. “Aí, comecei a beber para combater a solidão.”

Durante a pandemia, Marta regressou a Portugal. “Desconfiaram que estava a beber de mais", mas desculparam-na porque "tinha acabado uma relação e estava bastante destroçada." Quando voltou a sair de casa dos pais, percebeu “que tinha descambado”: a primeira coisa que fazia logo que acordava era beber. Marta sabia que bebia para conseguir enfrentar o dia-a-dia. O sabor não era o que lhe interessava, mas a eficácia da bebida. “Qualquer coisa que tivesse efeito fazia o serviço”, acrescenta. “Para conseguir funcionar minimamente”, teve de ajustar o seu consumo aos locais em que se encontrava. No trabalho, num bar, recorria ao vinho e à cerveja. Em casa, tinha as bebidas espirituosas.

Embora a situação estivesse “descarrilada”, o consumo não abrandou e começou a centrar-se em casa, longe de olhares indesejados. E se os amigos não davam importância, por também terem estilos de vida idênticos, a família só se apercebeu da dimensão da doença quando as consequências do consumo excederam o seu controlo.

Uma noite, Marta apareceu alcoolizada no bar onde trabalhava e foi despedida. Não demorou a arranjar uma nova posição. Continuou a beber e envolveu-se “num relacionamento tóxico”. “A relação terminou e vi-me a ficar sem o trabalho, porque descobriram que ia trabalhar sob efeito de álcool. Apareci no trabalho com uma faca, fui levada para uma ala psiquiátrica e fiquei fechada, sem consumir, durante uma semana. [Foi nessa altura que] os meus pais vieram buscar-me para ir para Portugal para cuidarem de mim”.

No internamento “salvaram-me a vida”

Por esta altura, ainda sem terminar o secundário, o álcool era um problema grave também na vida de Rita. A boa disposição deu lugar ao transtorno e tornou-se mais violenta, irascível, extremamente manipuladora, insensível aos sentimentos dos que mais a amam, enumera. Rita deixou de se dar ao trabalho de esconder os seus estados de embriaguez.

Os pais “tentaram de tudo”, desde limitar as saídas à noite, deixar de beber vinho ao jantar e trancar as bebidas de casa. Iam buscar a filha onde quer que estivesse. Mas Rita “arranjava as suas manhas” e acabava “sempre por ter o que queria”. “Não conseguiam ter mão em mim, porque eu adoptava atitudes violentas e autodestrutivas”, conclui. Em quatro anos, tentaram interná-la por duas vezes. Rita dizia sempre que conseguia largar o álcool sozinha, mas à terceira vez aceitou que precisava de ajuda. Nesse momento, bebia álcool etílico.

A “gota de água” foi uma discussão. Rita, sob o efeito de álcool, desentendeu-se com o irmão. Apesar de não o querer ameaçar, bradava com uma faca na mão. Chegou mesmo a atirá-la. No dia seguinte, o pai, que presenciou a cena, explicou-lhe que não haveria volta a dar. Rita ficou internada oito meses numa comunidade terapêutica. “Lá, salvaram-me a vida.”

De volta a casa, as duas jovens foram encaminhadas para as reuniões de Alcoólicos Anónimos (AA). Segundo Vítor (nome fictício), 54 anos, porta-voz da comunidade no Porto, o perfil dos que participam nas reuniões “está a mudar”: “Já nos começam a chegar mais companheiros com idades iguais ou inferiores aos 30 anos, já formados e informados e com um estatuto social médio-alto.” Vítor aponta a acessibilidade do álcool como potenciadora de consumos mais prematuros e vê também na partilha de informação sobre a doença do alcoolismo e consequente consciencialização o motivo pelo qual pessoas mais jovens se juntam às salas.

Além dos jovens, têm chegado também cada vez mais mulheres a estes grupos de auto-ajuda, um reflexo das conclusões do mais recente relatório do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Adictivos e Dependências (SICAD). Para Vítor, isto acontece porque o “tabu social estúpido de que é feio as mulheres beberem” tem sido quebrado e, por isso, as mulheres passam a beber mais abertamente.

Alcoólicos em recuperação praticam o “só por hoje”

Qualquer pessoa pode participar numa reunião de Alcoólicos Anónimos (AA), do Norte ao Sul do país, nas ilhas ou online. Tal como indica o site dos AA, “o único requisito para ser membro é o desejo de parar de beber”.

“O álcool é manhoso, progressivo e fatal. Quem bebe de forma recorrente – sem controlo e até não conseguir mais — vai acabar por sentir consequências na sua saúde, na vida pessoal, profissional e social. Mais tarde ou mais cedo, vão acontecer os erros, as perdas, as rejeições, os danos em si e nos outros”, descreve Vítor. E é por isso que o alcoólico que chega às salas já está maioritariamente sozinho: com o emprego por um fio, sem família e com amigos a afastarem-se.

Apesar disso, só quando é confrontado com estas complicações é que “reconhece que a vida não pode ser assim” e decide entregar-se e pedir ajuda. Nestes encontros, o anonimato é essencial, porque contam-se coisas que nem os próprios familiares sabem. “O que é dito ali morre ali e nunca mais é comentado”, diz Vítor. Não são feitos registos de presença e a partilha de dados individuais é limitada. “Não têm de saber onde moro, de onde venho, o meu curso, qual é o meu apelido e os sítios que frequento”, assegura.

As reuniões são dirigidas por um elemento do grupo e há sempre um convidado que vai falar sobre o tema principal do encontro. Além disso, dá-se espaço para todos falarem, mas não há diálogos, não há feedbacks, nem conselhos. “Todos estão ali para falar de si e sobre si, se quiserem”, afirma.

Além de seguirem os famosos 12 passos e as 12 tradições, os membros do AA praticam diariamente o “só por hoje”. “Dizemos que, por hoje, eu não vou beber e que amanhã logo verei”, explica Vítor. E é assim que tentam controlar uma "doença sem cura, mas com tratamento".

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Depois de começarem as reuniões, Rita continuou sem beber, Marta não. “Estava numa fase tão avançada que, se não bebesse mesmo durante a hora e meia das reuniões, vinham os sintomas da ressaca: tremores, suores e ansiedade. Então, não conseguia aguentar uma reunião.”​

Sem o seu conhecimento prévio, os pais internaram-na numa clínica de tratamento. Passou lá três meses. Regressou a casa e teve uma recaída. Marta já tinha decidido que “ia [voltar a] beber”​, só não sabia quando. Somaram-se mais três meses em tratamento. Em Janeiro, saiu da clínica, voltou às reuniões e não bebe há quatro meses. Entretanto, voltou para o estrangeiro e continua a participar em reuniões sempre que pode e precisa. Por vezes, vai a três encontros por dia, noutra língua.

Rita entrou na universidade e já não bebe há quase dois anos. A chave foi o “não-julgamento”. “[Nas reuniões] uma pessoa não se sente tão sozinha, tão diferente ou tão má”, conta. Rita pode lá chegar, ao final do dia, partilhar tudo o que quiser, mesmo a “maior barbaridade” do mundo, e ainda assim contar com compreensão sem juízos de valor.

“O álcool ainda não é uma preocupação”

A maior parte dos jovens que chegam às consultas especializadas em tratamento dos comportamentos adictivos e dependências é referenciada por entidades externas, tribunais, centros de saúde, escolas, entre outros. No entanto, não tendem a ser sinalizados por causa do seu consumo de álcool, mas por outros motivos, como o consumo de drogas, e só depois, durante as consultas, é que percebem que os jovens têm consumos problemáticos, adianta a psicóloga clínica da Divisão de Intervenção nos Comportamentos Adictivos e nas Dependências (DICAD), Andreia Ribeiro. “A verdade é que o álcool não é ainda uma preocupação quando os jovens são avaliados.

Apesar do alcoólico nem sempre ter consciência do problema, Manuel Cardoso alerta para três sinais associados ao alcoolismo: a constante necessidade de consumo, as falhas ao nível dos compromissos e a nota de um terceiro a chamar a atenção para a ingestão problemática de álcool. “Normalmente, é o outro que identifica. Alguém que acha que está a ter um problema numa fase inicial é uma sorte”, revela. “É por isso que a aplicação de testes, como o AUDIT (que pode ser feito online), é tão importante para que os jovens identifiquem os seus padrões de consumo.” É possível agendar uma consulta através do site do SICAD.

Tanto Marta como Rita conseguem identificar pessoas à sua volta com a mesma doença. “Honestamente, o que tenho a dizer é: ‘Não gastem a vida.’ Eu sei que é um instinto muito natural, experimentar, testar os limites, por causa do risco, da adrenalina, mas não vale a pena”, refere Rita.

“Quando uma pessoa entra em recuperação, encontra a esperança de uma nova vida”, frisa Marta. Sim, com o consumo, “a vida torna-se num inferno” e “uma pessoa parece que não consegue viver nem com [álcool] nem sem [ele]. Consegue-se viver com esta doença. Há um futuro”.

Embora todo o processo seja intenso, difícil e assustador, Rita lembra que, agora em recuperação, é que tem mesmo toda a sua vida pela frente. Apesar de o medo de ter uma recaída ser frequente, vive dia após dia segurando-se nos aspectos “mais simples” da vida para evitar a bebida: ora na família, ora nos gatos, nas séries, nos trabalhos, nos compromissos, na paz das reuniões.

Marta questiona-se todos os dias: “Será que esta decisão é a melhor para mim?” E a resposta anda de mão dada com aquilo que não quer fazer – desapontar a família e amigos. Depois, amanhã, pensa no resto.

Texto editado por Renata Monteiro

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