Sob a pressão da perfeição, meninas arriscam menos na criatividade, diz novo estudo

Estudo da Lego avança que 62% das crianças consideram que se espera que as meninas sejam mais perfeitas — número que tem impacto na auto-estima e confiança na idade adulta, lamentam especialistas.

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Dois terços de todas as meninas sentem-se frequentemente preocupadas em partilhar as suas ideias Daniel Rocha
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A desigualdade de género começa logo na infância, com as meninas a sentirem maior pressão para serem perfeitas, sem erros. Com medo de falhar, são mais propensas a não partilharem as suas ideias, avança um novo estudo global do grupo Lego, que analisou 61.500 pais e crianças em 36 países, incluindo Portugal. A solução para quebrar este círculo vicioso está nos pais e na mudança de discurso, dizem as especialistas ao PÚBLICO. “Os pais podem não estar conscientes do impacto daquilo que dizem e fazem tem nos filhos”, lamenta a psicóloga Joana Gentil Martins.

Aos cinco anos, 76% das meninas que participaram no questionário — elaborado entre Dezembro de 2023 e Janeiro deste ano — sentem-se confiantes da sua criatividade, que desce a pique à medida que crescem, com dois terços a confessaram-se “frequentemente preocupadas em partilharem as suas ideias”. Não o fazem (72%) com medo de errar e assoberbadas com o peso do perfeccionismo. Como resultado, apesar de 79% das meninas “aspirarem a profissões criativas”, acreditam que os rapazes têm maior tendência de serem reconhecidos por este tipo de trabalho — e 68% dos pais concordam.

“Tudo isto parte de meninos e meninas serem educados de forma diferente, quer na educação formal, quer em casa”, começa por analisar Sandra Saleiro, socióloga e investigadora do Iscte-IUL, em Lisboa, ao PÚBLICO. As meninas são “educadas para serem responsáveis, educadas e sossegadas”, com um “peso de terem de corresponder a esse bom comportamento e menor margem para erro.

Já os rapazes, observa a especialista, têm maior margem para serem independentes, o que também “estimula um pensamento mais independente” ou criativo. As disparidades, aponta Sandra Saleiro, começam com os brinquedos, que continuam a ser “mais sexistas do que a própria sociedade” — que já evoluiu para uma divisão mais justa do cuidado das pessoas dependentes e das tarefas domésticas. “Os brinquedos com uma dimensão de cuidado são os disponibilizados às meninas ou os que têm em vista o embelezamento. Para os rapazes, ficam os jogos de construção, por exemplo, que exercitam mais a criatividade.”

Certo é que oito em cada nove crianças sentem que podem ser elas próprias durante as brincadeiras, mas as meninas (85%) dizem-se mais preocupadas em cometer erros e serem julgadas, apesar de se sentirem mais confiantes em partilhar as suas ideias no contexto de brincadeira.

É a brincar que se aprende, até a auto-confiança e auto-estima, determina Joana Gentil-Martins. “É importante focar mais no processo do que no resultado final, assim as crianças podem explorar livremente, experimentar novas ideias e aprender”, diz, dando exemplos, como dar uma folha em branco para criar ou as brincadeiras do faz de conta, que “permitem às crianças fomentarem a imaginação” com recurso até à música, como forma de expressão.

Este foco no processo é fundamental não só nas brincadeiras, mas também na linguagem, que deve passar por um discurso incentivador, que fomentará a autoconfiança e a auto-estima. “Se os pais reforçam positivamente os comportamentos da criança, é positivo para a confiança, como reconhecer as conquistas, elogiar não só o que foi conquistado, mas também o esforço colocado”, reforça a psicóloga, dando como exemplos os resultados escolares, em que os pais devem congratular o estudo, independentemente da nota obtida na prova, evitando um discurso punitivo e critico.

Quando for preciso corrigir ou fazer uma crítica construtiva, a autora de A Coragem para Seres Tu Própria pede que o foco esteja na acção ou comportamento errado e não na criança, propondo sempre uma solução. Ou seja, em vez dizer que o seu filho é desarrumado por não ter colocado a roupa nas gavetas, prefira perguntar-lhe se precisa que o ensine onde a colocar ou como a dobrar.

É também este tipo de discurso que deve ser aplicado às áreas criativas, mostrando entusiasmo no que as crianças criam. “É importante que reforce que a criança pode criar, que errar faz parte do processo e não a torna menos válida. Por exemplo: ‘Não tenhas medo de tentar de novo’”. E, se for preciso, ofereça ajuda.

Todavia, nos elogios é preciso ter atenção ao tipo de adjectivos usados. “A forma como descrevemos e elogiamos meninas e meninos pode contribuir para a perpetuação de estereótipos. Associar 'doce' e 'bonita' pode levar as meninas a considerarem que o seu valor é medido por estas características e pode limitá-las a explorar outras”, declara a psicóloga. A socióloga Sandra Saleiro concorda, apesar de considerar que os pais o fazem de forma inconsciente: “Reproduzimos sem pensar, das princesas aos campeões.”

De acordo com o mesmo estudo da empresa dinamarquesa de brinquedos, a sociedade é “sete vezes mais propensa a atribuir termos como ‘doce’, ‘belo’, ‘giro’ e ‘bonito’ exclusivamente às meninas”. Enquanto, "corajoso", "fixe", "genial" e "inovador" são duas vezes mais atribuídos aos meninos.

E as consequências no futuro?

Este tipo de elogios vai ficando no subconsciente e tem “consequências práticas como a escolha das profissões”, observa Sandra Saleiro. “Continuamos a ter áreas que são mais escolhidas por cada género: as que são mais dedicadas ao cuidado e ao social são massivamente ligadas às raparigas e as STEM [do campo das ciências, tecnologia, engenharia ou matemática] são procuradas pelos rapazes.”

Esta desigualdade é influenciada pela educação, daí que a investigadora peça aos pais que não condicionem os gostos das crianças, não só nos brinquedos, mas também nos desportos ou até nas cores favoritas. “É deixar escolher, sem condicionamento, sem condenação social.”

A condenação e críticas constantes são um terreno próspero para a falta de auto-estima e o medo de errar. “Ouvirmos críticas ou julgamentos dos outros, por mais boa intenção e amorosidade que tenham, vão activar em nós o sistema de ameaça/alerta e podem gerar emoções desconfortáveis. E sim, este medo de falhar e do que os outros vão pensar/dizer/julgar pode impedir-nos de continuar e de tentarmos explorar ideias”, observa Joana Gentil Martins.

Esta falta de coragem e confiança na infância segue para a vida adulta, expressando-se não só na baixa auto-estima e menos resiliência, mas também em “dificuldade de nos expressarmos, de falarmos sobre as nossas ideias, de comunicarmos o que sentimos e pensamos”. Para contrariar, a psicóloga aconselha a treinar o discurso interno, “trocando a autocrítica pela autocompaixão”, questionando “os nossos pensamentos automáticos negativos” ao colocarmo-nos à prova, tentando ou arriscando, mesmo com medo.

Pode falhar, mas já é uma vitória ter tentado e, se for preciso, procure ajuda de um profissional de saúde. E lembre-se de tentar quebrar a tradição para a próxima geração. “Somos nós enquanto adultos que passamos esta imagem, mas podemos deixar de o fazer”, conclui Sandra Saleiro.

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