Peixe: mais vale de aquacultura do que nenhum

Não há dados que permitam avaliar a diferença na saúde de consumir peixe capturado ou cultivado.

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Os consumidores parecem ter um sentimento ambivalente quanto ao pescado aquícola Getty Images
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O consumo mundial de pescado cresce 3% ao ano desde 1960, devido ao crescimento da população, aumento dos rendimentos e preferência por alimentos saudáveis. A captura de pescado estabilizou nas últimas três décadas face à finitude das reservas naturais, e metade (49%) da produção global é assegurada pela aquacultura, estimando-se que atinja 76% em 2050. A esmagadora maioria da produção aquícola encontra-se na Ásia (92%), sobretudo na China (58%), e os maiores produtores fora dessa região (Noruega, Chile e Egito) representam menos de 2% cada. A expansão da aquacultura contribuiu para o desenvolvimento económico e a segurança alimentar, especialmente em África e na Ásia, permitindo o acesso a alimentos ricos em proteínas, vitamina D e ácidos gordos n-3.

Os consumidores parecem ter um sentimento ambivalente quanto ao pescado aquícola. A perceção pública é que o peixe selvagem tem uma qualidade superior, é mais bem alimentado, mais fresco, saudável e natural e contém menos antibióticos. Por outro lado, o peixe de aquacultura é considerado mais barato e disponível, e menos afetado pela poluição marinha, metais pesados e parasitas. As pessoas tendem a avaliar mais positivamente o peixe de aquacultura em testes sensoriais, mas mudam a escolha quando sabem a sua origem. Por conseguinte, é importante esclarecer a população neste domínio.

O peixe gordo é o principal fornecedor de ácidos gordos ómega-3, sobretudo o ácido eicosapentaenoico (EPA) e ácido docosahexaenoico (DHA), que reduzem o risco de doenças cardiovasculares, inflamatórias e neurológicas. Tradicionalmente, os peixes de aquacultura eram alimentados com farinha e óleo de peixes e tinham uma proporção de EPA+DHA semelhante ao peixe capturado (24%). No entanto, os ingredientes marinhos foram progressivamente substituídos por ingredientes vegetais, mais sustentáveis e baratos, como concentrados de proteína e óleos vegetais. Esta permuta não afetou a saúde e o crescimento do pescado, mas resultou numa redução de 30% a 60% de EPA+DHA no salmão cultivado na Noruega, Escócia e Austrália. Contudo, como o salmão de aquacultura é mais gordo do que o selvagem (12-17% vs. 4-8%), fornece mais EPA+DHA em termos absolutos (1-1,4g vs. 0,8g por 100g). Assim, embora já tenha sido melhor, o peixe gordo de aquacultura continua a ser uma boa fonte de EPA+DHA, consideravelmente melhor do que os peixes magros e os animais terrestres. Uma porção semanal de peixe gordo (200g) é suficiente para garantir a recomendação de EPA+DHA definida pela EFSA (250mg/dia). Estão a ser estudadas alternativas aos óleos vegetais que permitam melhorar o teor de ómega-3 ,e já se obtiveram resultados interessantes com a incorporação nas rações de óleos de microalgas ricas em ómega-3 ou de sementes oleaginosas geneticamente modificadas.

A substituição parcial dos ingredientes marinhos por vegetais também resultou na redução dos teores de iodo, selénio e vitamina D no peixe cultivado, pelo que os valores ficam aquém dos encontrados nas espécies selvagens (2-5μg vs. 15μg/100g, para o iodo e vs. 9-19μg por 100g, para a vitamina D). No entanto, o peixe gordo de aquacultura continua a ser uma das poucas fontes alimentares de vitamina D.

Uma das apreensões dos consumidores é a presença de antibióticos no peixe de aquacultura. A regulamentação sobre a utilização de antibióticos é muito rigorosa na Europa, onde apenas alguns estão autorizados e não para fins profiláticos. No entanto, a maioria da produção aquícola mundial é efetuada em países em desenvolvimento que não dispõem de regulamentação e controlo eficazes. Por exemplo, foram detetados 67 tipos de antibióticos em 11 dos 15 principais países produtores, principalmente no Vietname, na China e no Bangladesh. A utilização indevida de agentes antimicrobianos na aquacultura é problemática, pois acarreta riscos ambientais e para a saúde, nomeadamente a emergência de estirpes multirresistentes a antibióticos, tendo sido registadas 170 incidências de resistência antimicrobiana entre 2008 e 2018, sobretudo na China. Contudo, os quatro países com o maior consumo de antimicrobianos (China, Índia, Indonésia e Vietname) adotaram os limites máximos de resíduos estabelecidos da União Europeia para cumprir os requisitos de exportação. A utilização prudente de antibióticos na aquacultura sob supervisão veterinária é fundamental para garantir a segurança. É, ainda, importante investir em alternativas, como a seleção de espécies mais resistentes a doenças ou o recurso a vacinas multivalentes, que permitem reduzir o uso de antibióticos até 95%.

Se a substituição parcial da farinha e óleo de peixe por alternativas vegetais acarretou um prejuízo nutricional, por outro lado reduziu a concentração de contaminantes, como dioxinas, metais pesados e bifenilos policlorados, que estão presentes em menores quantidades no peixe de aquacultura do que no capturado. As concentrações de contaminantes nos peixes cultivados, tendo em conta os atuais padrões de consumo, representam um risco negligenciável. Os benefícios do pescado aquícola superam o risco para a saúde humana, como demonstrado em diversos tipos de peixe cultivados na China e na Turquia, em concordância com os estudos no peixe selvagem. Assim, recomenda-se a ingestão de até quatro porções de pescado por semana, mas as mulheres em idade fértil devem limitar o consumo das espécies mais contaminadas (espadarte e atum).

O consumo de pescado foi associado à redução da mortalidade geral e do risco de doenças cardiovasculares, cancro da próstata, esófago e linfoma, síndrome metabólica, doença inflamatória intestinal, diabetes mellitus, doença de Crohn, Alzheimer, esclerose múltipla, entre outras. Não há dados que permitam avaliar a diferença na saúde de consumir peixe capturado ou cultivado, mas considerando que a aquacultura representa metade do consumo mundial, não é expectável que os benefícios encontrados nos estudos sejam exclusivos do peixe selvagem. Os poucos estudos que avaliaram o efeito do consumo de salmão aquícola verificaram que aumenta os níveis de ómega-3 e de vitamina D e baixa os triglicerídeos, colesterol e marcadores de inflamação, quer tenha sido alimentado com óleo de peixe ou com óleo de colza, ainda que os efeitos possam ser mais significativos quanto maior o contributo de óleo de peixe na ração. Ou seja, a introdução de regimes alimentares mais sustentáveis no setor da aquacultura não compromete necessariamente os benefícios na saúde.

Considerando que menos de metade dos países europeus produz pescado suficiente para cumprir as recomendações de ingestão e que a maior parte não atinge a recomendação de ómega-3, não é prudente desconsiderar o peixe de aquacultura. O pescado de aquacultura é uma admirável fonte alimentar de proteína, ácidos gordos n-3, vitamina D e selénio, disponível durante todo o ano, e é essencial na resposta sustentável à crescente procura alimentar global.

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