É preciso mexer o corpo

É preciso mexer o corpo, é preciso ficar em forma, ou em fôrma, uma fôrma que caiba dentro das calças de ganga. E cada um a esforçar-se, como se alguém nos obrigasse.

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"Pergunto-me porque é que eu estou aqui, neste habitat tão maquinal e doentio" Andrea Piacquadio/pexels
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Ponho a toalha ao ombro e entro.

Chego ao espaço onde se cumprem infinitas repetições: Sísifos condenados por nutricionistas e por Personal Trainers, Prometeus acorrentados a elásticos de resistência, Hércules em 12 trabalhos de crossfit, Ícaros pendurados em barras de pull up, Édipos a expurgar equívocos com kettlebells.

À minha volta todos lutam consigo próprios, há suor e, às vezes, até uivos, uma alcateia que uiva perante máquinas de pulley e que tem as frequências cardíacas absolutamente controladas.

É preciso mexer o corpo, é preciso ficar em forma, ou em fôrma, uma fôrma que caiba dentro das calças de ganga. E cada um a esforçar-se, como se alguém nos obrigasse, alguém que não a voz da própria cabeça, a voz de certa forma heróica, o heroísmo que vence o sofá e todas as possibilidades de horizontalidade para o corpo.

Eu estou concentrada, ansiosa pelo momento em que deixo para trás aquele espaço que já conheço tão bem, onde vou ouvindo conversas sobre jejum intermitente, onde estamos convictos na luta contra a massa gorda, onde deixamos todas as outras convicções bem trancadas a cadeado no cacifo, pois ali só importa aquela, a convicção de perder calorias. Ou será que, ao levantar um peso, não estaremos a erguer desejos sublimados, será que não nos sentimos vencidos e vamos agachar com juras mentais de sairmos vencedores?

Usamos phones e evitamos o contacto, eu pelo menos evito, rezo para ninguém falar comigo, seria absolutamente catastrófico que alguém falasse comigo naquele contexto, e nem sei bem porquê.

Bicicletas ergométricas que não saem do sítio, pessoas obcecadas com isolamento de grupos musculares, a incompreensível ausência de janelas, a escolha musical sempre duvidosa. É pela saúde mental, digo e repito, embora não pareça mesmo nada.

Se alguém quiser ver a resistência e sentido de missão de um ser humano é darem-lhe a possibilidade de um glúteo mais torneado ou de um bíceps mais saliente.

As aulas de grupo, um espelho embaciado pelos vapores exaustos, um espelho que reflecte uma turma desajeitada, a fazer mais lembrar trutas a saltar em chão firme do que a pretendida coordenação de cardume. Desisti das aulas, olhava constantemente para o relógio e para a porta, ansiosa por não ter mais todas aquelas meias no horizonte. Inspirava fundo como me mandavam, mas o que saía na expiração era muito mais um “tirem-me, tirem-me, tirem-me daqui” do que dióxido de carbono. E, paradoxalmente, o síndrome de filha única, a falta de atenção que davam à minha lombar específica, num mar de lombares idosas muito mais relevantes para o olhar da professora.

Pergunto-me porque é que eu estou aqui, neste habitat tão maquinal e doentio, onde alternamos máquinas com seres humanos, onde transportamos pesos para lugar nenhum, onde tudo é à vez, mas sem lógica.

Atravesso os corredores, passo sempre por pessoas a encher enormes cantis com pós proteicos, e por engates estranhos e suados, e eu por muito que me esforce não consigo pensar num sítio menos sensual.

No balneário, no meio de névoa, há demasiados corpos, e se o meu cacifo é colado a outro, os rabos por vezes tocam-se, flancos molhados de mulheres alheias num contacto que reporta a outro tempo, a um tempo ancestral em que éramos anfíbios e estávamos sempre em convívio húmido, no meio da bruma, a um tempo em que éramos uma irmandade despida e demasiado junta.

Atravesso o nevoeiro de cara vermelha, abandono aquela caverna sufocante e deixo que o exterior liberte toda a experiência do corpo.

Ainda bem que vim, e amanhã estarei de regresso.

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