Carta aberta aos actuais responsáveis pelos destinos de Portugal

A imposição política ilegítima do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) tem obrigatoriamente de ser posta em causa e discutida publicamente!

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No ano em que celebramos o cinquentenário do 25 de Abril, que libertou o país da ditadura e nos trouxe a democracia, os partidos políticos, assim como os media, que lhes dão visibilidade, não podem, mais uma vez, silenciar a questão da imposição política a Portugal do Acordo Ortográfico de 1990.

Permito-me chamar a vossa atenção para a imperiosa necessidade de zelarmos pela defesa da nossa língua, actualmente fragilizada e em risco, pela imposição política antidemocrática do Acordo Ortográfico de 1990.

O desinteresse pela nossa língua, suporte essencial da nossa identidade e da nossa cultura, é algo que vem de longe e é incompreensível. Recordemos que a Academia das Ciências de Lisboa, fundada a 24/12/1779, levou 222 anos para publicar o seu primeiro e único dicionário (2001), agora com uma versão na Net; a Real Academia Española, de 1713, publicou, em Outubro de 2014, a 23.ª edição do seu dicionário! E, além da falta de investimento no estudo da língua, inclusivamente no nosso sistema de ensino, convém também lembrar o esquecimento a que são votados os nossos emigrantes.

Estamos em 2024, um ano particularmente assinalável no desenrolar da História nacional. Num artigo do PÚBLICO de 20/12/2023, «Programa das comemorações dos 500 anos de Camões em 2024 está por fazer», lemos: «Nada existe além do anúncio da intenção do Governo de comemorar este feito, disse à agência Lusa a catedrática Rita Marnoto, comissária designada para preparar o programa das comemorações». A propósito deste "esquecimento" nacional, recordo Jorge de Sena:

«Se me centrei em Camões […] é porque o admiro tremendamente, tenho pena de que tão grande poeta tenha nascido português e para pasto de raça tão ordinarizada, e porque, sendo o maior e o eixo da nossa literatura, é em relação a ele que tudo tem de ser feito.» (Carta a Eduardo Lourenço, 13 de Janeiro de 1968).

Ouçamos ainda Vasco Graça Moura: «As questões da identidade começam por estar relacionadas com a língua materna e esta deve a Camões a sua dimensão moderna. (...) A língua de Camões está irreconhecível. Se ele voltasse ao mundo, decerto pensaria em rasgar a sua obra. Deixámos de ser dignos dela.» (in "A língua de Camões?", PÚBLICO, 9 de Junho de 2010)

A imposição política do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) a Portugal é também um verdadeiro atentado contra a democracia que nos trouxe o 25 de Abril de 1974. Todo o processo político que conduziu à sua implementação no nosso país é antidemocrático. Dou a palavra a Vítor Aguiar e Silva:

"A língua, na sua existência profunda e multissecular, vive antes de nós e sobrevive depois de nós, não podendo ser objecto, no seu corpo e no seu espírito, de alterações ocasionais e circunstancialmente políticas, que desfiguram a sua 'lei secreta', ou seja, o 'seu génio', como aconteceu com o aberrativo 'acordo ortográfico' que constitui um inominável crime imposto politicamente à língua portuguesa.» (in Diário do Minho, 6/1/2019)

Há muito que me preocupa esta espécie de desprezo pela língua portuguesa, assumido pela política, e alguma "elite", nacional. Um dos argumentos dos defensores do AO90 é que seria difícil agora pô-lo em causa, uma vez que desde 2011 começou a ser ensinado aos mais jovens! Pasme-se: e não se preocuparam quando forçaram a sua imposição ao país e à população que, desde 1946, ortografava a nossa língua segundo o Acordo entre Portugal e Brasil (1945), que o nosso país respeitou e o Brasil rejeitou!

Quanto ao argumento de que "as línguas evoluem", convém reflectir sobre os seguintes aspectos:

1. As línguas evoluem naturalmente e não em função da imposição política de um qualquer decreto;

2. A evolução verificada numa língua poderá exigir uma "reforma" ortográfica, tendo em conta as características dessa língua, e não um "acordo" ortográfico entre variantes da língua que evoluíram visível e audivelmente de maneira diferente, como é bem notório no caso da norma portuguesa e brasileira da língua portuguesa;

3. As diferenças entre estas duas normas, no que toca a todos os aspectos da língua – vocabulário, morfologia, sintaxe, fonética – não podem ser escamoteadas com uma pretensa "uniformização" ortográfica, via AO90 que, aliás, propõe inúmeras duplas grafias, facultatividades, numa negação aberrante do próprio conceito de ortografia;

4. No AO90 ("Anexo II - Nota explicativa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa") refere-se que o Brasil não respeitou o Acordo de 1945, porque seria obrigado a repor as "chamadas consoantes mudas" que entretanto tinha já eliminado, por conta própria e a aceitar a acentuação gráfica de Portugal, com acento agudo em vez de circunflexo, em palavras como António/Antônio; em consequência, aí se conclui também que "não é possível unificar por via administrativa divergências que assentam em claras diferenças de pronúncia, um dos critérios, aliás, em que se baseia o sistema ortográfico da língua portuguesa";

5. Assim, justificando a recusa do Acordo de 1945 pelo Brasil, com as "diferenças de pronúncia", o AO90 impõe a Portugal a supressão das "consoantes não articuladas" (Base IV), já adoptada pelo Brasil, num total desrespeito pela referência etimológica (o que apaga a história da nossa língua e nos afasta das outras línguas europeias), e pela pronúncia portuguesa, em que a manutenção dessas consoantes preserva a abertura das vogais pretónicas, em Portugal ensurdecidas, e mantém a unidade da grafia entre palavras da mesma família; ex.: óptimo/ optimismo; directo/direcção; etc. Aliás, podem constatar-se já as alterações na pronúncia portuguesa que esta supressão das consoantes mudas está a provocar...

6. No essencial, o AO90, que segundo o próprio texto "constitui um passo importante para a defesa da unidade essencial da língua portuguesa e para o seu prestígio internacional", impõe a Portugal as opções brasileiras: supressão das consoantes ditas mudas, assim como do hífen, nas formas monossilábicas do verbo "haver" seguidas da preposição "de" (ex.: há-de); supressão "facultativa" do acento agudo nos verbos em -ar, no pretérito perfeito simples (ex.: cantámos) e do acento circunflexo no verbo 'dar', no presente do conjuntivo (dêmos), suprime-se ainda o acento circunflexo, nas formas verbais como leem, veem, deem, etc...

Todos nós, cidadãos portugueses, em idade de votar, sendo Portugal um país democrático, somos chamados a participar nestas eleições legislativas. Entre os múltiplos aspectos da vida nacional a considerar, a imposição política ilegítima do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) tem obrigatoriamente de ser posta em causa e discutida publicamente! Ainda não vi abordar esta questão, nem pelos políticos, nem pelos jornalistas, nos vários debates que a televisão nos tem proposto, numa atitude que só confirma a fragilidade da nossa democracia. Mas ainda se vai a tempo!

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