Memórias felizes à beira-mar
Dois meninos de países e culturas diferentes brincam na praia e ficam amigos. Parece tão simples.
Numa pequena vila piscatória, um menino aguarda todos os dias que o pai chegue da pesca com o seu barco, Marie Claire. Um dia, embarca também: “Era o meu baptismo de mar.” Mas logo percebe que aquela não era vida para ele. “Eu via como a terra se afastava, até que começou tudo a andar à roda na minha cabeça.”
O pai ficou desapontado, zangado até: “— Nunca farei de ti um homem do mar, como o teu pai ou o teu avô!” Não voltou a pôr um pé no barco, mas continuou a ir à praia ver o pai chegar da faina.
Foi numa dessas esperas, em Agosto, que apareceu Kai. Vinha com o pai dele para comprar o peixe trazido nas redes do seu. “Pusemo-nos a correr pela praia. Não falava a nossa língua. Tinha uns olhos como eu nunca tinha visto; uns olhos brilhantes e curiosos.”
A família de Kai, vinda do Japão, abrira “um restaurante onde se servia peixe cru enrolado em arroz”. Os rapazes tornaram-se amigos, com a rapidez e alegria como só na infância (e na praia) acontece.
A descoberta e aceitação do outro de forma natural e feliz revela-se aqui através da ida à casa do amigo, “tirámos os sapatos à entrada e comemos com pauzinhos”, da transformação de pedaços de madeira trazidos pelo mar, “apontou para eles como se tivesse encontrado um tesouro… e transformou-os num barco”, da descoberta do origami, “ensinou-me a fazer peixes de papel”.
Autobiografia e ficção
Luciano Lozano explica no fim do livro (Guia de Leitura) que quis “prestar, de novo, um tributo à cultura japonesa”, descoberta numa viagem durante a sua formação de ilustrador. Conta também: “Tal como o meu pai e o meu avô, nasci em La Atunara, um bairro de pescadores de La Linea de la Concepción, no estreito de Gibraltar.”
Recorda como o avô tinha de atravessar a fronteira para trabalhar num navio cujo nome recuperou para o pequeno barco do pai do menino desta história, Marie Claire. Também reproduziu a âncora que o avô trazia tatuada no braço.
Sobre o título, diz ter-se inspirado no poema de Manuel Alcántara, de Málaga: “Eu sou um menino na praia./ Aqueles montes de Málaga/ lançaram todos os seus versos/ e as suas penas e as suas cabras.” Dedica o livro à irmã, que integra num momento em que o protagonista joga aos berlindes com uma menina.
O seu passado enquanto criança, mas também a descoberta do arquitecto islandês Pálmar Kristmundsson, que num documentário contou como a arquitectura japonesa tinha influenciado o seu trabalho graças a um amigo japonês de infância, fazem com que considere este livro “autobiográfico e de ficção”.
Na história, o menino que esperava o pai na praia torna-se arquitecto e conta-nos: “A minha professora de arquitectura dizia-me que as coisas tinham de ser perfeitas. Eu sabia que ela estava enganada, que teria de procurar a beleza nos defeitos, como um barco feito de pedaços de madeira arrastados pela maré.”
Mesmo sem entender a língua do amigo japonês, o rapaz que nunca seria pescador nem marinheiro ficou a saber que o nome Kai significava “mar”.
Afastados os meninos, já adultos, ficou aquela ligação invisível que une para sempre quem alguma vez se quis bem. Parece tão simples.