Sou uma Guardiã da noite, uma Knight Rider
Faço-me à pista, como um atleta que não espera pelo sinal da partida, um cavalo de corrida injetado com adrenalina, que dispara ao som do tiro, ao som da batida da música. Boum… Boum… Boum…
Desta noite não passa. O semáforo vermelho acende e eu avanço, não vem ninguém, ninguém viu. A partir da meia-noite, o Código da Estrada não tem efeito, olho pelo retrovisor, os meus lábios vermelhos, uma linha impecavelmente contornada a emoldurar a cavidade lubrificada da minha boca… uma brecha… aproveito.
Estaciono em contra mão, um arrumador assoma à janela, abro a porta, sorrio, contorço a boca “Só tenho isto”, os lábios desculpam-se sedutores (melhor assim, se tratas a cidade com desprezo, ela cospe-te na cara), os olhos podem ser o espelho da alma, mas os lábios são a porta de entrada).
A noite está escorregadia, a calçada está húmida, as solas derrapam. Um grupo de turistas nórdicas, de saltos agulha, exibe movimentos de ginástica acrobática enquanto experimenta espargatas acidentais e micro-lesões nas virilhas. Lisboa requer destreza, é preciso habilidade. Ultrapasso-as, finto-as com a minha vantagem biológica, de pernas curtas há menos hipótese de desequilíbrio — é uma lei da física —, e elas olham-me como quem aprecia um nativo a galgar a selva, uma chita num safari.
Desta noite não passa… Trouxe o casaco de cabedal, as botas de pele, trouxe os lábios vermelhos, os meus mamilos modestamente simétricos debaixo de um vestido transparente. Só à noite é que as transparências são permitidas, só à noite é que podemos despir. O compromisso social — nudez só fora do horário de expediente, sensualidade pós-laboral.
Só. À noite… Já não me lembrava desta sensação, ela quer fugir mas eu não a deixo derrapar: sou uma Guardiã da Noite, uma Knight Rider. “Kitt vem-me buscar”! (As saudades que tenho do Justiceiro, as saudades que eu tenho de coisas que já não existem!) Hoje acabo com as saudades. De hoje não passas. É só começar a música, é só eu começar a dançar, espera só até esta noite começar a fazer efeito, espera só até entrar na corrente sanguínea. O truque é estar em jejum para não comprometer o efeito da cerveja.
À porta do bar, um molho de estrangeiros de cor salmão acotovelam-se como se alguém tivesse espremido uma borbulha no edifício e eles tivessem estourado lá de dentro… A música escorre… “Mistify… Mistify me...” (não sabia que era noite de Anos 90. Tenho saudades da música dos anos 90). Perfuro o grupo, entro no bar, dirijo-me ao bengaleiro, tiro o blusão, soletro um boa-noite mudo, encarnado. A rapariga sorri. “Belos mamilos!”, pensa. “Belo vestido!”, diz.
Peço uma cerveja, faço-me à pista, como um atleta que não espera pelo sinal da partida, um cavalo de corrida injetado com adrenalina, que dispara ao som do tiro, ao som da batida da música. Boum… Boum… Boum… Os cascos das minhas botas batem no solo. Um salmão encosta-se a mim, os olhos devoram o tom da minha pele “Nice Tan!” vocifera-me ao ouvido. Fere-me o tímpano. Será que faz ideia que de todos os gradientes que tenho, este é o meu tom mais albino? Os meus lábios cerram-se. A minha língua retrai-se… “Ana! Não estás a ver que estão a falar contigo? Diz olá ao senhor! Ana? Não ouves? Cumprimenta o senhor! Dá um beijinho! Só um beijinho! Ana?... Está envergonhada…”. Não abro a boca.
Não quero, não quero dizer olá a ninguém, não quero dar um beijinho a ninguém, tenho a língua seca. Preciso de líquidos, as minhas glândulas salivares paralisaram, preciso de reforços, cerveja, tequila… Soro, preciso da tua saliva. Esquivo-me do salmão, escapo escorregadia entre as costas que dançam — quando não sei como agir faço-me de enguia. Encontrão! No ombro. “Vê por onde andas!”, penso. “Desculpe!”, digo. “Uísque…”, peço, “Obrigada!”, sorrio, sem convicção.
Os meus lábios estão dormentes, como os pés quando ficam muito tempo na mesma posição a pedir para serem usados. Bebo o uísque num trago, arde no peito, bebo outro, álcool numa ferida. Retorno à pista, sou um piloto de Fórmula 1 depois da pit stop, acelero, o ritmo aumenta, a frequência cardíaca sobe, a respiração ofegante, agora já não vou parar, desta noite não passa.
Olho para as pessoas que dançam à minha volta… (“Será que sabem que vamos morrer um dia?”) Sempre que bebo fico existencialista, uma lucidez acutilante ataca-me, foram aqueles livros todos do Sartre e do Camus. (O Camus era sexy. A preto e branco, com a gola da gabardina levantada e cigarro pendurado no canto da boca. Tenho saudades dos fumadores. Nunca fumei mas sempre adorei o efeito do fumo à volta dos lábios, aquela nuvem tóxica e inebriante. Não sei o que custa mais, se as saudades que temos das coisas que já não existem ou as saudades que temos das coisas que existem mas não podemos ter.)
As plantas dos pés queixam-se. Devia ter trazido ténis, devia ter consumido carboidratos, devia ir ao WC. Os meus lábios mexem-se em várias direções. Será que eles topam que não sei a letra? Será que topam que a partir da minha boca se estende um buraco infinito para dentro de mim que não sei onde acaba, não sei se acaba nunca? Um buraco vazio para onde a música escorre a reverberar no eco das paredes do meu peito. Boum... Boum… Boum…
Um crocodilo da Lacoste numa camisa branca mira-me fixamente. Um peito liso, rosto reto, de cabelo impecavelmente penteado procura aproximar-se. Os homens arrumadinhos… Tudo o que eu gostaria de desejar mas que me provoca aborrecimento letal. Pressagio: tédio. Vaticino Consultor da Empresa-tal-e-tal, admirador-de-Padel, Férias-na-Neve, Gatinhos-domésticos e… crocodilos-Lacoste! Será que sabe que o que me cativa é um bom animal selvagem, um tigre pronto a atacar, um touro ferido, um cão abandonado cheio de raiva? Tenho um Kit de Domadora, tenho experiência em resgates de feras de grande porte: sempre falhados e todos sangrentos — não se domesticam animais selvagens — o resultado é sempre o mesmo… “Blood on the Dance floor!” (Ah… saudades do Michael Jackson!) O crocodilo cola-se a mim, serpenteia-me. “Kitt vem-me buscar!” Empurro-o. Desculpe, é a minha fraca saúde emocional, sim, foi-me diagnosticada, no Google, como todas as doenças, o prognóstico não é animador: falha de memória, longos períodos de privação, dificuldade de cicatrização. “Tenho de ir ao WC…” Tropeço. “Vê por onde andas!”
Fixo o espelho no lavatório. Dou de caras com uma mulher semelhante a mim mas ligeiramente menos atraente com os lábios esborratados. Passo o pincel vermelho no contorno dos lábios, falho o risco, saio fora da linha, como naquelas pinturas do pré-escolar, da pré-história. Está na hora de ir.
Pego no carro. Faço uma oração. Uma espécie de Responso a Sto. António, mas invertido — este não é para encontrar coisas, mas para não encontrar uma brigada da PSP a caminho de casa, são só quatro quilómetros, ninguém vê, a partir da meia-noite o Código da Estrada não tem efeito, de qualquer modo tenho uma desculpa na manga: “Sim senhor agente, bebi mas a minha irmã está nas urgências, vai ter bebé, não tenho tempo para soprar o balão, ative a sirene e o carro patrulha!” “Claro! Atenção todas as unidades! Temos uma situação de urgência: Condutora do sexo feminino com vestido semitransparente. Repito: condutora do sexo feminino com vestido semitransparente em situação de urgência. Evacuar o Eixo-Norte Sul!”
Nunca o usei, fica por saber se resultaria. Estaciono à porta de casa, um pilar de cimento dá um encontrão nas traseiras do meu carro - a chapa do meu Citroën tem cicatrizes de todas as minhas convalescenças amorosas. Se desprezas a dor, ela cospe-te na cara. Olho o reflexo dos meus lábios no retrovisor, vermelhos, famintos, desabitados, a gretar de saudades... Ainda não foi desta. Noutra noite… talvez. Knight Rider.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990