Engolir o sapo, antes que se transforme em príncipe de vez!

Estou de pantufas, no 5B do dito prédio. O homem que grita lá em baixo é um guarda prisional, com o qual tive três encontros. Três.

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Rita Lagarto
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Está um homem fardado em frente a um prédio de uma urbanização de classe média, prédios dos anos dois mil, janelas decentes, flores nas varandas de acrílico. São duas da manhã. A rua está naquele silêncio simpático que têm os bairros de classe média-a-querer-ser-alta. O silêncio vê-se apenas perturbado pelo homem que grita: “Anaaaaaa!!! Eu te amo!

Podíamos achar que esta história se passa no Brasil, num qualquer capítulo suburbano de um bairro da cidade de São Paulo. Mas não. Passa-se em Portugal, onde o pronome oblíquo “te” vem a seguir ao “amo”. Apenas ligados por um pequeno hífen, essa minúscula ponte que continua a fazer tantos estragos na comunicação dos amores. “Pensas-te em mim?” em vez de “Pensaste em mim?” “Levas-te a sério? Em vez de “Levaste a sério?”. Tudo perguntas que desembocam em respostas totalmente divergentes da intenção pretendida da questão primária. “Levo-me pouco a sério, menos do que devia, e penso-me muitas vezes, mas, más notícias: não sempre contigo. Penso-me mais vezes nas Baleares com o meu professor grisalho de Filosofia e Cultura Contemporânea, da minha pós-graduação (por muito que esse pensamento me envergonhe).”

Mas calma, já estamos a atravessar o Oceano, e ainda nem atracámos em terra firme. Estou de pantufas, no 5B do dito prédio. O homem que grita lá em baixo é um guarda prisional, com o qual tive três encontros. Três. (O facto de ele ser guarda prisional tem pouca relevância para o episódio, tendo em conta que o conheci na função de empreiteiro quando renovei o 5B do dito prédio. Mas é um pormenor daqueles picantes, acompanhado de toda uma panóplia de imaginário erótico: algemas, farda, botas de polícia… que daria dó deixar de fora.) Por isso a saber: guarda prisional de profissão/empreiteiro nas horas vagas.

Íamos portanto nos três encontros. Três. A primeira vez que estivemos juntos, aconteceu. Ele tocou-me (in)voluntariamente na mão enquanto montava os rodapés e me explicava uma série de detalhes sobre como os havia de colocar: “Às vezes é uma questão de milímetros.” Eu estava a ler as precauções e advertências no manual junto à cola e aproximei-me. Há coisas que uma mulher não consegue aguentar: as ferramentas de medição do ângulo das aduelas, o ribombar da serra-elétrica, o cheiro a cola de madeira do chão, o odor da tinta fresca do teto, o escadote impecavelmente vertical, a barba escura, os braços musculados, as mãos com pó, as sobrancelhas cerradas, a voz grave e… rodapés!

Lancei-me para uma dúvida importantíssima sobre a medida dos rodapés. Coloquei a questão a uns escassos milímetros da boca do empreiteiro para não restarem dúvidas. Às vezes é uma questão de milímetros… A sala pré-restaurada virou-se do avesso com um ritmo perfeitamente compassado e com uma coreografia inesperadamente sofisticada, e o teto ficou a tremer num ângulo surpreendentemente oblíquo. Aconteceu. Aconteceu também que ele se esqueceu de me avisar que tinha uma relação exclusiva, não-aberta-a-terceiros. Um + Um. Ficava a faltar um espaço para a minha parcela na equação. Como assim uma relação na qual eu não estava incluída? Se todas as relações da minha vida me incluíram sempre. Havia que averiguar.

A segunda vez foi então para averiguar. Para, digamos, tirar as teimas. Obras findadas, arranja-se o pretexto de um rodapé a descolar. Parti para a pesquisa, devota do método científico, Observação: Eu-estou-carente-e-sozinha. Hipótese: Ele. Experiência: Envolver-me-com-ele-engolindo-o-sapo (ou melhor a rã da namorada que ainda por cima é completamente abstrata quando eu sou tão concreta.) Complicado? Pois bem. Ele vem, remonta e remata o encontro com um conclusivo: vou-mas-fico-quero-mas-não-sei-se-quero-a-minha-relação-está-para-acabar-mas-é-para-sempre — e toda uma carga de ambivalências e ambiguidades, que são o chamariz perfeito para qualquer detida voluntária. Eu, a reclusa, ofereço-me à jaula, ao cárcere, só não quero a solitária, por favor: uma jaula para dois, com lençóis macios, estores japoneses e pequeno-almoço na manhã seguinte.

O segundo encontro incluiu dormida, pequeno-almoço e saída confusa, com larga gargalhada apaixonada do carcereiro, seguida de tremor na sobrancelha, pose hirta, descontrolo nas pernas, novo sorriso, mão no meu rosto, mão na minha cintura, mão nas chaves do carro dele, súbito esgar de fuga, pose de stress pós-traumático, e por fim um “Até Já!” que bem podia trazer uma promessa lá dentro. “Até daqui a nada, até sempre, onde seremos felizes ao luar, eu e tu, atrás das grades.”

O sapo que se transforma em guarda do palácio, e eu ainda a mastigar a coxinha da rã… “Até já” é claro. Para mim pelo menos, que me comovo com a semântica das coisas. E “já” é sem margem para dúvidas um advérbio de tempo que indica “agora; no imediato”. Mas ficaram margens para dúvidas. Margens extensas. Um tiro na gramática. O “já” durou sensivelmente dois meses. Dois meses com mensagens vagas. Dois meses de fantasias pós-contemporâneas: sonhos de reencontro nas prateleiras do Leroy Merlin, cumplicidade em pequenos gestos de bricolage, revisitações de imagens tórridas com farda antes-e-depois, conjeturas da rutura com aquela entidade abstrata, e a esperança (sempre a esperança, essa conselheira vingativa!) que seja uma espécie de amor em lume brando, só à espera de levantar fervura. Forçado de empurrão por mim. Forçaste? Forçaste-te? Forço-te. Forço-me?

O terceiro encontro é mal-amanhado. Aquele biscate feito à pressa. Outro serviço para fazer. Trabalho na prisão. Turno da noite. Não vai dar para ficar… Aquela sensação de que fui trapaceada. Ludibriada. Burlada. Eu no turno da noite. Logo eu que sou tão diurna. A noite dá-me sempre um ar esbatido. Amor em turnos. Não resulta. Três encontros. Três na equação. Já cantavam Renato e Seus Blue Caps, “Um é pouco, dois é bom… Três é demais.” Ficamos por ali. Cai-me mal a pressa. É a minha mania de me apaixonar sem as devidas precauções e advertências. Amor? Onde é que eu tinha a cabeça? Ou melhor o peito e a púbis – duas áreas voláteis, interligadas por tecidos não retratáveis em ecografias, somente em fantasias...

Até que uma noite. Três meses depois… “Anaaaaaa…” E o resto já sabemos. Que vergonha… Fico tranquilizada pelo facto de saber que Ana é o nome provavelmente mais vulgar no universo trivial das mulheres nascidas entre os anos 80 e 90. Ele toca à campainha fervorosamente. Corro para o intercomunicador. Faço uma voz ligeiramente soprada e visto-lhe um sotaque eslavo: “Humm. Não tocar, senhor. Menina Ana não viver mais aqui. Aqui agora viver Olga…” (Uso o mesmo truque com o carteiro dos CTT quando me tenta entregar multas em cartas registadas.) Ele desaparece. Ombros tristes apertados na farda. Em direção ao calabouço da sua incompreensão. E se eu tivesse aberto a porta? Não. Engulo o sapo. Antes que se transforme em príncipe de vez.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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