Arnaldo Trindade, um cosmopolita num país provinciano
Levou o Conjunto António Mafra à América, recebeu (e declinou) um convite de Ed Sullivan, editou, fintando o regime, tudo quanto era do reviralho. Um homem bigger than life.
Começou a ir à América ainda adolescente. O pai representava grandes marcas de electrodomésticos em Portugal e como não falava inglês levava o filho para traduzir. Chegaram a ir de barco, no luxuoso Queen Elizabeth, que não demorava muito mais do que o avião. A rota aérea era longa e com pernoitas pelo meio. Porto-Lisboa-Londres-Dublin-Halifax e, finalmente, Nova Iorque.
Já adulto, levou o Conjunto António Mafra em digressão às comunidades portuguesas nos Estados Unidos. No primeiro concerto, a banda vendeu os discos que iam na bagagem, mas Arnaldo Trindade conseguiu que os estúdios da RCA, no Rockefeller Center, lhe reservassem uma manhã para gravar um LP. Ninguém acreditava que fosse possível, mas “os Mafra estavam muito bem treinados”. Prensaram os primeiros 50 mil discos estereofónicos em português e a RCA ainda lhes ofereceu as capas. Esgotaram.
Num dos concertos, apareceu-lhe um tipo a perguntar se os Mafra não quereriam ir ao seu programa televisivo dali a uns meses. Era difícil, eles “não são profissionais, um é técnico de rádio, outro de frigoríficos, outro tem uma loja de fazendas…”. Os músicos confirmaram, só tinham lá ido em férias. Mesmo assim, o americano deixou um cartãozinho, não fossem mudar de ideias. Era Ed Sullivan, o homem que levou os Beatles à América, o americano mais conhecido depois do Presidente, pioneiro dos talk shows televisivos e recordista de audiências. Se os Mafra lá tivessem ido teriam vendido milhões de discos. Mas, claro, havia o rádio, os frigoríficos e as fazendas para vender por cá…
Tinha o bichinho da música e da poesia desde miúdo. Quando disse ao pai que queria fazer uma editora, a reacção foi liberal: “Faz o que entenderes, mas não te dou um tostão para isso.” Fez uma empresa dentro da empresa da família e geriu-a como um liberal. Não afrontou directamente a ditadura, mas o amor pela literatura e pela música fez dele um democrata que aprendeu a contornar os constrangimentos do regime.
Editou tudo quanto era do reviralho — Zeca, Adriano, Zé Mário Branco, Sérgio Godinho. E tudo quanto era escritor — Aquilino, Régio, Ferreira de Castro, Miguéis, Torga, Eugénio, Agustina, Daniel Filipe. Na música foi o primeiro a editar em Paris, no estúdio onde gravavam os Stones, os Beatles e os Procol Harum. E até na Deutsche Grammophon fez um disco de jazz.
Por cá, era mais difícil, só podiam gravar no estúdio da rua Santa Catarina, em frente ao Majestic, depois das duas da madrugada, quando os eléctricos já não circulavam…
Mas se aquelas paredes falassem, recordariam a noite em que Torga teve uma síncope quando começou a gravar os seus poemas. “Já viu o risco? Tinha de pôr lá uma placa a dizer: 'Aqui morreu Miguel Torga a ler os seus poemas'”. Seria uma suprema ironia, porque foi ele que o convenceu a entrar naquela aventura depois de garantir que lhe pagaria os direitos de autor à cabeça: dez por cento por cada disco assinado pelo autor.
Ou aquela noite em que Régio revelou a sua indignação pela forma como João Villaret lhe “estragou” o Cântico Negro, que era um poema intimista e “devia ser dito de outra maneira”.
Ou aquele dia em que lhe entrou um pide na loja com ordens para apreender todos os discos do Je t’aime moi non plus. Mas, disse-lhe, “o senhor dê-me cá cinco e esconda os outros todos”.
Disso sabia ele, como esconder material proibido pelo regime. Ele que até fora a Biarritz para comprar os livros do Sade. Era assim Arnaldo Trindade, um cosmopolita inconformado com o país provinciano em que nasceu.
Um português bigger than life.