Os vinhos, a viticultura e os ensinamentos que António Maçanita bebe do Porto Santo

São vinhos impossíveis, de castas exóticas (uma não existirá em mais lado algum), e de um terroir onde “seria impossível ter vida sem água” mas ela brota. De solos calcários, numa ilha vulcânica.

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Nuno Faria, sócio da Profetas e Villões, e as colheitas de 2022, em Agosto, à porta da adega que ergueu com António Maçanita no Porto Santo Ana Isabel Pereira
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Os vinhos tranquilos do Porto Santo impressionam pelo seu bouquet absolutamente original — que mistura mar e um calor envolvente, o que é difícil de explicar, mas definitivamente nos remete para as areias da ilha dourada —, por serem impossíveis no plano teórico e por serem exóticos. E, no caso da casta Caracol, únicos até.

António Maçanita e Nuno Faria, sócios na Companhia de Vinhos dos Profetas e dos Villões, apresentaram, no início de Dezembro, as últimas colheitas — os primeiros vinhos engarrafados já no Porto Santo, numa adega 'montada' em tempo recorde — dos vinhos que têm vindo a produzir no arquipélago desde 2020. Quer no Porto Santo, quer na Madeira. Aqui, impressionam os tintos de Tinta Negra, cujas uvas, imagine-se, viajaram agora para a segunda ilha para serem transformadas.

O Porto Santo está no plano do "quase impossível", como sumariou a dada altura o produtor e enólogo António Maçanita, seja por ser muito seco — a pluviosidade média anual, nota, anda entre os 320 e os 380 milímetros; "há muito poucas zonas do continente que tenham tão pouca chuva" —, seja por ter uma viticultura caríssima, "de minifúndio e de grande detalhe, em que é preciso fazer caninhas para levantar as uvas" de videiras que estão literalmente deitadas sobre a areia e que são protegidas do vento por muros de crochet.

“É uma região no limite do que é possível fazer." E, no entanto, permite fazer tanto. Até tirar lições para usar em regiões vitivinícolas com pergaminhos, como é o caso do Alentejo, que tem vindo a sofrer com os efeitos das alterações climáticas e para onde Maçanita admite estar "a importar ideias". "Estou a aprender imenso para a viticultura do Alentejo. Temos de regressar a uma forma de regar com a chuva usando a sua gravidade, como fazem os porto-santenses", confessou durante a prova que decorreu no 100 Maneiras (Nuno Faria é sócio de Ljubomir Stanisic no restaurante lisboeta).

As vinhas dos 15 viticultores com quem a Profetas e Villões (nomes que os ilhéus dão aos porto-santenses e aos madeirenses, respectivamente) trabalha ficam em solos calcários, "mais uma razão para ser muito difícil a vinha vingar" ali. "Temos uma ilha vulcânica mas em que os solos de vinha são 80% calcários." Tornando mais difícil a obtenção de vinhos com boa acidez. Arenitos calcários, restos de mar que ao longo de milhões de anos — o Porto Santo terá emergido há 14 — viraram areia, funcionam "como uma esponja", que absorve a água para a disponibilizar quando ela é precisa.

Quando chove, os locais encaminham essa água, com recurso a regos e pequenos diques, para os terrenos agrícolas e, no caso da viticultura, inundam as próprias vinhas. Sempre no inverno, não no período de crescimento. Não funcionará em todo os solos, mas nos calcários sim. Conta António Maçanita que na ilha lhe dizem com frequência: "Não interessa se é noite de Natal, se começa a chover sais de casa e vais bloquear a água."

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Nuno Faria e António Maçanita são sócios na Companhia dos Vinhos dos Profetas e dos Villões; o PÚBLICO esteve com eles no Porto Santo na última vindima Ana Isabel Pereira

E como é que tudo começou?

A aventura de Maçanita e Faria começa em 2020 no Porto Santo por causa da pandemia de covid-19. Nuno é madeirense e, como qualquer madeirense, contava vários verões de férias naquela ilha. Quando as primeiras infecções por coronavírus foram confirmadas em Portugal, Nuno, que vive em Lisboa, teve "a sorte" de conseguir apanhar o último avião que aterrou no Porto Santo antes de o primeiro confinamento ditar o encerramento do aeroporto. Foi a 13 de Março.

Passou uns três meses na ilha, com a esposa, grávida à época. "Fiquei lá, com tempo para pensar. Começámos a partilhar aquilo por que estávamos a passar, eu nos restaurantes, foi um drama terrível, o António também nos vinhos, mas ele acabou por reinventar-se, com o online. E, na altura, lembro-me de estar a voltar da praia e de me lembrar de na minha infância ainda haver vinhas nas dunas", contou ao PÚBLICO.

Nuno ouvia os produtores locais falarem do tal Caracol, para o qual se desconhece qualquer correspondência a nível mundial, e do Listrão — Listan Blanco nas Canárias e Palomino Fino em Jerez —, duas castas com as quais sempre ali se fez vinho, embora com pouco ou nenhum preceito enológico. Falou com António e o resto é história, mas podemos contá-la, que ainda não é sobejamente conhecida. Conta o segundo que nunca tinha "que em 2020 ia encontrar aquelas vinhas no Porto Santo". É que "lugares especiais não se encontram em todo o lado", nota quem iniciou a revolução que se conhece no Pico, Açores.

"Quando houve confiança para falarmos, eu e o Nuno, foi quando eu percebi que havia Listrão." É que se o Caracol, que Gaspar Frutuoso e Darwin já descreviam como sendo uma variedade cujos cachos ficavam pejados de caracóis, "é a casta dominante do Porto Santo e hoje em dia o bem mais precioso da ilha", o Listrão Maçanita conhecia e sabia dar bons vinhos. Isso e: "Quando cheirei os vinhos do senhor Cardina [um dos viticultores que hoje lhes vende uva], cheiraram-me aos vinhos dos senhores do Pico." Dourados, licorosos pré-fortificação, oxidados de propósito.

De resto, é quase como se António Maçanita, que ajudou a recuperar o Terrantez do Pico e o Arinto dos Açores, não conseguisse voltar as costas ao pitch: é uma casta com história, cultivada há anos num terroir único, está mais ou menos esquecida, pode estar a desaparecer e ainda por cima tem interesse enológico.

"Só para resumir o Porto Santo", diz a dada altura: "clima temperado oceânico, solos calcários, baixa pluviosidade" e um terroir em que o homem é parte do terroir. "Só conhecendo”, brinca. Em Agosto, o PÚBLICO teve oportunidade de conhecer alguns dos viticultores a quem a dupla compra uva (a propósito, a primeira vinha que António e Nuno explorarão directamente será plantada em breve nas dunas do antigo parque de campismo) e o que Maçanita quer dizer é que os porto-santenses são de ideias fixas e preferem fazer como sempre fizeram. São 15 os viticultores mas podem ser mais. "Outros não ficaram, porque nós vindimamos em três vezes", exemplifica o enólogo. Noutros casos, esse saber fazer é útil para redescobrir outros perfis de vinho, como o do Vinho da Corda (ler notas de prova).

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Filipe Neves, na foto, e o filho, que lhe herdou o nome, são dois dos viticultores que fornecem uvas à Profetas e Villões; vindima de 2023 Ana Isabel Pereira
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Hugo Vasconcelos (à direita) trocou a sua barraquinha de produtos locais no centro da Vila Baleira pela viticultura a tempo inteiro, graças ao projecto da Profetas e Villões Ana Isabel Pereira

Entre os que ficaram, há quem tenha mudado de vida e passado a ter na viticultura a sua principal actividade principal. É essa transformação social e económica que também paga os 4 euros ao quilo a que estão cotadas as uvas do Porto Santo (isso e haverem poucas, a ilha tem ao todo apenas uns 14 hectares de vinha), das mais caras do país e muito à conta de concorrência que se gerou, quando, a seguir à Profetas e Villões, outras empresas começaram a produzir vinhos tranquilos na ilha (Justinos, Quinta do Barbusano, Madeira Vintners mais recentemente). “Honestamente eu quero que avance rápido. Quero ver economia e ver vida.”

Os vinhos que provámos foram engarrafados à mão na adega que já foi garagem e onde o frio é feito em contentores de carga num parque de estacionamento ("não falta nada", afiançou-nos Maçanita quando lá estivemos), a primeira adega com licenciamento industrial do Porto Santo (mas que já não é a única): 15 mil garrafas que seis pessoas engarrafaram e outras seis rotularam, num trabalho que levou uma semana.

Nome Caracol dos Profetas 2022

Produtor Companhia de Vinhos dos Profetas e dos Villões

Castas Caracol

Região DOP Madeirense (Porto Santo)

Grau alcoólico 12,5%

Preço (euros) 24,95

Pontuação 92

Autor Ana Isabel Pereira

Notas de prova É, digamos, a entrada da série de vinhos que António Maçanita faz no Porto Santo. Reza a lenda que a mal-amada Caracol (porventura por ser produtiva, chegou à ilha dourada casta levada por um tal de senhor Caracol, que havia estado emigrado na África do Sul. Como fez já com tantas outras castas, o produtor e enólogo mandou analisar os microssatélites desta variedade intrigante, um estudo que revelou uma enorme proximidade genética com o Listrão. Também como esta, será, antes, uma casta da nossa geografia mais a Sul. De um amarelo pálido, no nariz leva-nos imediatamente para a ilha e mistura um lado salino com aromas de terroir calcário (em ilha vulcânica, sim). Passou dez meses sobre borras e tem várias camadas. Conseguimos sentir o iodo do mar e o cheiro das fazendas de areia, quase todas nos terrenos que ladeiam o aeroporto. É intenso, muito fresco e com boa acidez. Já o tínhamos provado em Agosto, com poucos dias de garrafa, e parecia ter um carácter ligeiramente redutivo (“cheirava a Canárias”, diz Maçanita), que entretanto desapareceu. Bebe-se assim, só, com muito prazer, o que não quer dizer que não seja gastronómico. 4.733 garrafas.

Nome Caracol dos Profetas Fazendas de Areia 2022

Produtor Companhia de Vinhos dos Profetas e dos Villões

Castas Caracol

Região DOP Madeirense (Porto Santo)

Grau alcoólico 12,5%

Preço (euros) 59,95

Pontuação 93

Autor Ana Isabel Pereira

Notas de prova Vinhos como este já beneficiaram de em 2022 o produtor ter podido, na nova adega, prensar em separado cada parcela dos viticultores com quem trabalha no Porto Santo. Estão lá os aromas do Caracol dos Profetas, mas neste Fazendas de Areia – feito com uvas de vinhas em que os tais arenitos calcários que marcam o terroir do Porto Santo estão mais desfeitos – eles surgem mais exacerbados. Numa mistura de iodo, um lado redutivo-pólvora e notas cítricas. Aromas que não vêm da casta Caracol, que até à data é conhecida apenas naquela ilha, mas antes do terroir. Como diz o produtor e enólogo, António Maçanita, estas é que serão “as castas do terroir”. "Não têm aroma, são transparentes e carregam o lugar.” Na boca, revela uma frescura fantástica, mineral e várias texturas. Salino, untuoso e persistente. Belíssimo. Depois da prova a solo, esteve muito bem na maridagem com o bonito da Madeira marinado que a equipa do 100 Maneiras preparou especialmente para a ocasião. 2.567 garrafas.

Nome Listrão dos Profetas 2022

Produtor Companhia de Vinhos dos Profetas e dos Villões

Castas Listrão

Região DOP Madeirense (Porto Santo)

Grau alcoólico 12,5%

Preço (euros) 59,95

Pontuação 92

Autor Ana Isabel Pereira

Notas de prova O Listrão – nas Canárias é o Listan Blanco, em Jerez o Palomino Fino – tem um lado mais floral do que o Caracol, a outra casta tradicional do Porto Santo, mas também carrega o terroir da ilha. Num nariz intenso, também ele com notas iodadas e de pólvora (que aparecem muito nos vinhos de ilha vulcânicas, vinhos esses que estão, de resto e segundo nos dizem, muito na moda). Boca cheia, expressiva e a confirmar o que sentimos exalar antes do copo, com um final que parece nunca mais finalizar. Apesar de o nosso palato não o ter achado tão impactante como o Caracol, é um belo vinho. O detalhe a que obriga a viticultura no Porto Santo tem agora seguimento na adega, e para este vinho o enólogo António Maçanita fez 60 prensagens. Uma loucura boa.

Nome Vinho da Corda dos Profetas 2022

Produtor Companhia de Vinhos dos Profetas e dos Villões

Castas Listrão e Caracol

Região DOP Madeirense (Porto Santo)

Grau alcoólico 12,5%

Preço (euros) 59,95

Pontuação 93

Autor Ana Isabel Pereira

Notas de prova Este é uma referência nova no portefólio da empresa que António Maçanita montou com o madeirense Nuno Faria. E nasce da aprendizagem constante do enólogo nos (e com os) terroirs onde trabalha. E no Porto Santo o vinho da corda é uma tradição ancestral e aquele que se consegue quando se espreme ainda mais o mosto; por oposição à “flor”, o primeiro vinho, sempre mais claro e fresco. É de um dourado carregado, tão em voga noutros tempos, quando ainda não havia chegado ao arquipélago e ao vinho Madeira a aguardentação (chegaria no século XVII) e os vinhos eram naturalmente mais alcoólicos e oxidativos. Vamos ao vinho. De um dourado acobreado, faz lembrar um Tokaj. Tem nariz de licoroso, muito intenso, mas a boca é seca, singular de facto, encorpada, concentrada e longuíssima. É deliberadamente oxidado, como se percebe, e estagiou 12 meses num pipo velho emprestado pelo senhor Cardina, um dos viticultores parceiros do produtor na ilha.

Nome Crosta Calcária dos Profetas 2022

Produtor Companhia de Vinhos dos Profetas e dos Villões

Castas Listrão (83%) e Caracol (17%)

Região DOP Madeirense (Porto Santo)

Grau alcoólico 12,5%

Preço (euros) 150

Pontuação 94

Autor Ana Isabel Pereira

Notas de prova A Crosta Calcária é uma zona geológica no Norte da ilha de Porto Santo, com solos calcários mais compactados, que dão origem a vinhos ainda mais minerais. Inebriante, este Crosta Calcária dos Profetas tem um nariz muito diferente das outras referências que os Profetas e Villões produzem na ilha. Cheira a mar, a areia, a conchas e tem um quê fumado que denuncia a origem vulcânica de um terroir com vinhas de chão de areia. Na boca, é um vinho cheio, e cheio de texturas. Boa acidez. Final fumado e longo. Fantástico. Boa a ligação feita durante a apresentação, no 100 Maneiras, com Lagosta com “buerre blanc” de ouriço-do-mar. Apenas 633 garrafas.

Nome Rosé dos Villões Tinta Negra 2022

Produtor Companhia de Vinhos dos Profetas e dos Villões

Castas Tinta Negra

Região DOP Madeirense

Grau alcoólico 12%

Preço (euros) 14,90

Pontuação 91

Autor Ana Isabel Pereira

Notas de prova Feito com uma variedade do encepamento antigo da Madeira, uma casta que fora das ilhas é rara, terá sido usada no passado para "corar" os vinhos brancos. As uvas vêm de vinhas de latada em São Vicente e no Estreito de Câmara de Lobos, metade, metade. Com este vinho, António Maçanita testa, sem espiga, o potencial da Tinta Negra em rosés. Tem um nariz intenso, com morango e um lado vegetal. Entra fresco, com boa acidez e uma salinidade que lhe denuncia o berço. Distinto, com grande textura, também perdura. Bastante gastronómico. 6500 garrafas.

Nome Tinta Negra dos Villões 2022

Produtor Companhia de Vinhos dos Profetas e dos Villões

Castas Tinta Negra

Região DOP Madeirense

Grau alcoólico 12%

Preço (euros) 24,95%

Pontuação 93

Autor Ana Isabel Pereira

Notas de prova Um Tinta Negra de que, desconfiamos, gostarão até os críticos da utilização da casta em vinhos tranquilos. Só tem 12% de álcool, mas um tanino que lhe dá uma estrutura de vinho grande e que virá do facto de o enólogo ter desengaçado apenas 70% dos cachos. As uvas são das tradicionais vinhas em latada e de três parcelas, no Estreito de Câmara de Lobos e em São Vicente, portanto costa Sul e costa Norte, solos vulcânicos, já se sabe. O vinho estagiou parcialmente (70% do lote), e durante oito meses, em barricas usadas de carvalho francês. Nem damos por essa madeira neste tinto de cor aberta e nariz rústico, puro, com morango fresco e algum fumo. Na boca, é elegante, fresco, muito gastronómico – provámo-lo também à mesa, com a espetada em pau de louro que o 100 Maneiras serviu especialmente para a ocasião. O final é longuíssimo, com retronasal fumado.

Nome Tinta Negra Vale de São Vicente 2022

Produtor Companhia de Vinhos dos Profetas e dos Villões

Castas Tinta Negra

Região DOP Madeirense

Grau alcoólico 12%

Preço (euros) 59,95

Pontuação 94

Autor Ana Isabel Pereira

Notas de prova A Tinta Negra (aka Molar, em Colares, ou Saborinho, nos Açores) faz parte do património vitícola da Madeira, sempre foi usada nos vinhos Madeira – se bem, que no passado, e hoje, por vários produtores ainda, sem honras de figurar nos rótulos – e nos últimos anos começou a ser usada em vinhos tranquilos. Ainda não tínhamos provado nenhum como este. Feito com uvas de uma parcela única (videiras com uns 70 anos), vindimadas já depois de todos os viticultores vizinhos terem apanhado os seus cachos, no final de Setembro, é naturalmente um vinho de cor aberta, com um nariz delicado e intenso ao mesmo tempo, frutos vermelhos, musgo, fumo. Na boca, é fresco, com boa acidez, texturado, concentrado e complexo. Parece ter um tanino que a Tinta Negra não tem, o enólogo diz que essa sensação vem da utilização de cacho inteiro (30%) na fermentação. Retronasal fumado. Final longo, muito longo. Um grande tinto da Madeira, em que o enólogo soube extrair o que era bom evitando o mau numa maceração seguida de 40 dias (depois estagiou oito meses em barricas usadas de carvalho francês). E um tinto que mostra que é possível fazer grandes tintos na Madeira – ou ter essa aspiração. 2.700 garrafas.

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