Deputados voltam ao projecto de lei que restaura Casa do Douro como associação pública
A pedido do PSD, decorreu esta terça-feira, em sede de especialidade na Assembleia da República, uma audição conjunta de várias organizações ligadas ao comércio e produção durienses.
Nove meses depois da aprovação na generalidade dos projectos de lei do PS, PCP e BE que pretendem restaurar a Casa do Douro como associação pública e a cerca de um mês da dissolução da Assembleia da República (AR), decorreu esta terça-feira, em sede de especialidade uma audição conjunta de várias organizações ligadas ao comércio e produção durienses. A audição foi pedida pelo PSD, que indicou no início de Outubro sete entidades, a que se somam três das que foram a posteriori indicadas pelo Chega.
Na mesma altura, os partidos acordaram voltar à iniciativa legislativa depois do Orçamento do Estado, e os sociais-democratas ainda tentaram que as audições fossem individuais, demorasse o que demorasse, pretensão que acabou por cair. Ouvidos pelo PÚBLICO ainda em Outubro, vários deputados que acompanham o processo diziam acreditar que seria possível levá-lo até à votação final global ainda nesta legislatura, o que implicará sempre chegar a acordo quanto a um texto único final, uma vez que das três iniciativas aprovadas em Março sairá uma só lei. Com a crise política espoletada pela demissão de António Costa, a iniciativa poderia ficar, mais uma vez, adiada.
Mas, esta terça-feira, o deputado socialista João Miguel Nicolau reafirmou o "compromisso do PS assumido em eleições legislativas anteriores" e mostrou-se convicto de que, "se tudo correr bem", será possível "reinstitucionalizar a Casa do Douro" até ao novo escrutínio.
A 10 de Março, de resto, cumprir-se-á quase um ano da primeira votação, já que três projectos de lei foram aprovados a 24 de Março, com publicação em Diário da República no dia seguinte, com os votos a favor dos deputados do PS, PCP, BE, PAN e Livre, a abstenção do PSD e os votos contra do Chega e da Iniciativa Liberal.
Esta terça-feira, João Miguel Nicolau defendeu a importância de se recolherem mais contributos nesta fase. E, ainda em Outubro, outro socialista, Agostinho Santa, entretanto com mandato de deputado suspenso por razões de saúde, dizia ao PÚBLICO que o PS procuraria uma discussão "participada" e "o mais amplo consenso" parlamentar.
São ao todo dez as entidades que os deputados chamaram à AR: Comunidade Intermunicipal do Douro (CIM Douro), o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP), a Uniadegas - União das Adegas Cooperativas do Douro, a ProDouro, a Federação Renovação do Douro (FRD) – entidade que tem neste momento a gestão privada da Casa do Douro –, a Associação da Lavoura Duriense, a Associação das Empresas de Vinho do Porto (AEVP), a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte, na perspectiva do que pode vir a acontecer com a desconcentração de serviços públicos –, a Direcção Regional de Agricultura e Pescas do Norte e a Associação para o Desenvolvimento da Viticultura Duriense (ADVID) / Cluster Vines & Wines. As últimas três foram acrescentadas à lista por sugestão do Chega, que chegou a indicar outras cinco entidades e personalidades do sector e da região.
"Do meu ponto de vista, houve uma tentativa nítida de silenciar as associações e quem não está do lado do PS", acusava, há algumas semanas, o deputado Pedro Frazão. Entre as entidades que o Chega também queria ouvir, estavam, por exemplo, o Instituto de Financiamento de Agricultura e Pescas, que gere o programa VITIS, e a Agência Portuguesa do Ambiente, por causa da gestão dos recursos hídricos da bacia hidrográfica do Douro.
Criada em 1932 para defender os viticultores (que são hoje cerca de 19 mil e dos quais 13 mil têm menos de um hectare de vinha) e a viticultura duriense, a Casa do Douro viu alterados os seus estatutos para associação com gestão privada e inscrição facultativa em 2014, durante o Governo de Passos Coelho, sendo actualmente liderada pela FRD.
Em 2020, chegou a entrar em vigor a lei que a reinstitucionalizava como associação pública e inscrição obrigatória, mas, no ano seguinte, o Tribunal Constitucional (TC) apontou inconstitucionalidades à legislação, nomeadamente, uma insuficiência na definição de competências de natureza pública. As iniciativas aprovadas em Março pretendiam sanar as questões levantadas pelo TC. A nova lei estabelecerá um regime incompatível com o anterior, que deu origem à gestão privada e que será revogado – expressamente ou implicitamente.
Com a extinção, em 2014, o património da Casa do Douro ficou ao cuidado de uma comissão liquidatária, de cujo trabalho ainda não se conhece um relatório — estará feito o levantamento patrimonial e faltará apenas celebrar um acordo de dação em pagamento de dívidas a entidades públicas, dividas essas que rondarão os 130 milhões de euros e que estarão cobertas pelo património —, mas a lei de Passos Coelho deixou de fora o edifício histórico da Casa da Douro, que foi entregue à FRD, e que esta inscreveu como sendo seu. Mas fontes ouvidas pelo PÚBLICO explicam que essa propriedade estaria legitimada apenas enquanto a FRD fizesse a vez da Casa do Douro. Com a revogação da legislação anterior, o imóvel de 1944 deverá regressar à Casa do Douro.
O que defendem os partidos?
"O que defendemos no nosso projecto de lei é que a Casa do Douro tenha uma direcção com eleição democrática e que a cada produtor corresponda um voto. A Casa do Douro tinha outra competência muito importante e que nós também temos no nosso projecto: a possibilidade de intervenção no mercado. Este ano, não houve excesso de produção, o que houve foi dificuldade de escoamento", defende o PCP, pela voz do deputado João Dias, com quem o PÚBLICO falou em Outubro.
"Em anos de excesso de produção a Casa do Douro ia buscar esse vinho, para em anos de menor produção o meter no mercado e a preços compensadores. Neste momento, não pode fazer isso", explica o deputado, relacionado a ausência de uma entidade com tal competência com o cenário que fez com que o Douro levasse a maior fatia dos apoios à destilação de crise. "O que a região pede é uma região regulada, não liberalizada, e que defenda os interesses da produção", entendem os comunistas, para quem que se não fosse pelo benefício já "a lavoura estaria totalmente nas mãos da exportação". Para o PCP, resume João Dias, há ainda uma terceira questão: "o cadastro é um elemento decisivo, roubaram-no à Casa do Douro e tem de voltar à Casa do Douro, uma vez restaurada".
Pelo PSD, tem acompanho este dossiê o deputado João Moura, que explica os pontos críticos para o partido. A iniciativa da esquerda "consagra o que são grémios da lavoura", algo que vem "do tempo de Salazar, em que as pessoas eram obrigadas a comprar os seus produtos em determinados locais", afirma. O que, para os sociais-democratas "não faz sentido" e é condição sine qua non: "fazemos questão que seja retirado do documento".
Por outro lado, para o PSD, a questão das competências, que levou ao chumbo do TC, mantém-se: "Revelou-se inconstitucional porque o novo organismo público tinha poucas competências. E agora o que fizeram? Foram buscar competências que estão com o IVDP." O cadastro, pelo qual "o IVDP pagou muitos milhares de euros", deve regressar à Casa do Douro, concorda João Moura. A dúvida é em que condições: "agora a Casa do Douro vai agora pagar milhares de euros para ter o cadastro de volta?"
Outra questão que o PSD coloca é como olhará o direito europeu para a restaurada Casa do Douro: "o IVDP tem consagrado o direito europeu, a Casa do Douro não. Como é que com as competências que vamos retirar a um e dar a outro vamos conseguir que a União Europeia continue a consagrar a instituição como reguladora da região demarcada?"
Já esta terça-feira, o deputado do PSD comentou que "a pressa que se está a imputar a este sistema não é a mais favorável para a tomada de decisão", referindo que apesar do momento político, consequente da queda do Governo, as "instituições não vão acabar aqui e Portugal vai ter um novo Governo e um novo ministério da Agricultura".
O social-democrata defendeu que, mais importante do que a reforma institucional da Casa do Douro, é a reforma institucional da Região Demarcada do Douro. A propósito da calma que pede o PSD, dizia um deputado da esquerda em Outubro ao PÚBLICO temer que a condição imposta pelos sociais-democratas de se ouvir um conjunto de organizações ligadas ao comércio e produção durienses fosse uma "manobra dilatória".
Já Rui Afonso, do Chega, disse não existir "qualquer justificação para a restauração da Casa do Douro como associação pública de inscrição obrigatória" e que esta restauração "viola grosseiramente o princípio da liberdade de associação". "Nada justifica que só os agricultores do Douro se encontrem sujeitos ao ónus de integrar uma associação pública quando os viticultores de outras regiões demarcadas não se encontram sujeitos à mesma obrigação", frisou, esta terça-feira.
A inscrição obrigatória foi um dos aspectos mais criticados da iniciativa legislativa da esquerda. Pelo PCP, explicou ao PÚBLICO João Dias que, "para entregar uvas, os viticultores têm de ser sócios". "Este ano houve muitos a bater às portas das adegas cooperativas, que não os aceitaram, porque primeiro tinham de dar resposta aos seus. O que nos defendemos é que a Casa do Douro tem de estar com os viticultores nas horas boas e nas horas más."
Para João Cotrim Figueiredo, da Iniciativa Liberal, o problema central da região são as quebras nas vendas de vinhos do Porto, argumento que a audição da AEVP veio adensar — António Filipe disse aos deputados que as vendas de vinho do Porto decresceram cerca de 20% nos últimos 20 anos, perspectivando-se uma quebra de cerca de 5% este ano nos vinhos do Porto e Douro.
O deputado criticou ainda, na audição desta terça-feira, as competências que foram acrescentadas à Casa do Douro para justificar a existência de uma associação pública, exemplificando que das 28 competências que passa a ter, sete são de colaboração, seis são de participação ou promoção e três de emissão de pareceres não vinculativos.