O OE são palavras, mais importantes são os actos
A proposta de OE e os discursos que a envolvem são pouco mais do que manobras de comunicação. O Governo foca-se nas medidas dirigidas aos jovens, classes médias e reformados. Lá terá a suas razões.
Ao nível macroeconómico, o discurso do Governo sobre o Orçamento do Estado (OE) para 2024 faz sentido. A quebra da procura externa poderá ter impactos maiores do que se esperava na actividade económica e no emprego em Portugal. O modo de contrariar essa tendência é aumentar a procura interna, evitando agravar dois outros problemas que o país enfrenta: a inflação e a dívida pública.
É isto que o Governo diz querer fazer: reforçar o consumo das famílias aumentando o rendimento disponível, através da redução da carga fiscal e do crescimento maior que previsto do salário mínimo; reforçar o investimento, através da execução do PRR e do Portugal 2030; evitar as pressões inflacionistas decorrentes da procura, mantendo o crescimento dos salários a níveis modestos; e continuar a reduzir o rácio da dívida pública no PIB, restringindo o aumento da despesa.
A orientação é clara e soa coerente, mas tem vários problemas. Para a maioria dos funcionários públicos e não só, os aumentos não são apenas modestos, são insuficientes para recuperar o poder de compra. A redução nas taxas de IRS para os primeiros cinco escalões é parcialmente cancelada por uma actualização dos limiares que fica aquém dos aumentos salariais previstos. A opção de aumentar rendimentos pela via fiscal deixa de fora as famílias mais pobres (a metade das famílias que estão isentas de IRS). As fortes restrições ao crescimento da despesa ameaçam adiar a resolução de problemas urgentes em vários domínios de governação. As medidas para lidar com o problema da habitação são quase todas de natureza fiscal, deixando de fora, mais uma vez, as pessoas de menores rendimentos.
Não menos importante, o OE é apenas uma declaração de intenções que nos diz pouco sobre o que irá de facto acontecer, principalmente no domínio da despesa. Como mostram os diversos pareceres sobre a Conta Geral do Estado (o documento que relata a execução efectiva das despesas e das receitas públicas), tem-se verificado ao longo dos anos um desvio significativo entre o que o Governo anuncia no momento da aprovação do OE e aquilo que acontece na prática.
Quem julga que este problema irá desaparecer com o fim anunciado das cativações desengane-se. O Ministério das Finanças continuará a dispor de vários instrumentos para limitar os gastos aquém do que está previsto no OE. Várias outras normas em vigor fazem depender da decisão arbitrária do ministro das Finanças a autorização para realizar despesa (e.g., a dotação provisional, as dotações centralizadas no Ministério das Finanças e a reserva orçamental). O Governo dispõe ainda de instrumentos de controlo que a UTAO tem designado por “não convencionais”: um conjunto de normas jurídicas utilizadas de forma recorrente para impedir a despesa em recursos humanos e aquisição de serviços, fazendo depender a autorização da intervenção de vários membros do executivo.
Os mais optimistas vêem aqueles artifícios como necessários para a sustentabilidade das contas públicas. Na prática, traduzem-se na ingerência dos decisores políticos na microgestão das entidades do Estado, introduzindo não só lentidão nos procedimentos administrativos, mas também a necessidade de encontrar formas expeditas (e quase sempre mais custosas) para dar resposta a necessidades urgentes.
Até ver, a proposta de OE e os discursos que a envolvem são pouco mais do que manobras de comunicação política. Este ano, o Governo resolveu focar o discurso nas medidas dirigidas aos jovens, às classes médias e aos reformados. Lá terá a suas razões. Quando saírem os dados sobre a execução de 2024, em Junho de 2025, estaremos todos ocupados com outros fados e ninguém se lembrará de perguntar se o que hoje foi prometido foi de facto executado.