Um poema desconhecido de Fernando Pessoa

Rabiscado nas costas de um texto de Álvaro de Campos e decifrado por Richard Zenith, este ruba’i ao jeito de Omar Khayyam foi publicado na revista Lote em Julho.

Pormenor do documento original com o manuscrito do poema
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Pormenor do documento original com o manuscrito do poema
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Capa e contracapa do número 4 da revista Lote
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A revista literária Lote publicou no seu quarto número, lançado no final de Julho, um poema inédito de Fernando Pessoa, descoberto e decifrado por Richard Zenith: “A ave canta livre onde está presa./ O servo dorme e o sonho lhe é surpresa./ Liberta-te, mas nega a liberdade./ Poder e não querer, eis a grandeza.”

O esquema métrico e rimático – rima no primeiro, segundo e quarto versos –, mas também o próprio tom do poema, identificam-no como mais um dos muitos ruba’iyat (plural de ruba’i) que Fernando Pessoa escreveu ao estilo do poeta e cientista persa Omar Khayyam, nascido em meados do século XI.

Noticiada pelo Observador, a publicação deste inédito ficou a dever-se à iniciativa de um dos editores da revista Lote, Tomás Gorjão, que contou à Rádio Observador que estava a ler a biografia de Pessoa escrita por Richard Zenith quando se lembrou de perguntar ao autor por algum eventual inédito do poeta.

Zenith encontrou o poema, manuscrito a lápis, no verso de uma folha onde Pessoa escreveu à máquina o texto Novela Curta, atribuído a Álvaro de Campos e publicado a 4 de Agosto de 1929 n’O Notícias Ilustrado. A quadra ocupa apenas um quarto das costas dessa folha, que partilha com outros versos a lápis, muitos deles riscados por cima. Está escrita numa caligrafia apressada e difícil de decifrar, o que provavelmente explica que tenha permanecido tanto tempo inédita.

“Descobri e decifrei este poema já há vários anos, mas ficou perdido entre os meus apontamentos”, contou Richard Zenith ao PÚBLICO, acrescentando que o facto de ter percebido que se tratava de um ruba’i, e que portanto teria de corresponder a uma determinada contagem de sílabas e ter rimas em todos os versos menos no terceiro, acabou por ser uma ajuda preciosa para conseguir desvendar o texto.

“Fernando Pessoa publicou três ruba'iyat (forma plural de ruba'i) à maneira de Omar Khayyam (1048-1131) no último número da revista Contemporânea, datado de Julho-Outubro de 1926, mas foi em 1928 que começou a escrever ruba'iyat com fervor”, escreve Zenith numa nota que redigiu para acompanhar a publicação do poema na revista Lote, que incluiu também imagens do manuscrito original.

“Ao gozo segue a dor, e o gozo a esta./ Ora o vinho bebemos porque é festa,/ Ora o vinho bebemos porque há dor./ Mas de um e de outro vinho nada resta.”, reza o último dos três ruba’iyat que Pessoa publicou na Contemporânea.

Ainda segundo Zenith, o poeta terá escrito “perto de duzentas quadras ao estilo persa”, tendo cabido a Maria Aliete Galhoz, lembra ainda, organizar várias publicações destes ruba’iyat pessoanos, designadamente no âmbito da edição crítica. Numa delas, publicada em 1997 e reeditada em 2003 pela Assírio & Alvim, o conjunto recebe o título de Canções de Beber: Ruba'iyat na obra de Fernando Pessoa.

Matemático e astrónomo, os feitos de Omar Khayyam na ciência (deixou, por exemplo, um importante tratado de álgebra) estão mais bem documentados do que a produção literária que lhe é atribuída, parte da qual possivelmente não escreveu. Mas os poemas que lhe são tradicionalmente creditados fizeram grande sucesso no Ocidente a partir da segunda metade do século XIX, quando o inglês Edward Fitzgerald os traduziu pela primeira vez, em 1859, com o título Ruba’iyat.

Jorge Luis Borges diz que do encontro entre Khayyam e Fitzgerald, separados por mais de sete séculos, “surge um extraordinário poeta, que não se parece com os dois”. Foi este poeta composto, por assim dizer, cantor do vinho e da embriaguez, mas também de uma lúcida e desolada consciência de que toda a vida é breve e sem sentido (e mais vale, por isso, gozar o dia), que fascinou o poeta português a quem se devem, por interposto Ricardo Reis, versos como estes: “(…) No mesmo hausto/ Em que vivemos, morreremos. Colhe/ O dia, porque és ele.”

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