Lutar contra o fascismo em Itália, resistir à heteronormatividade em todo o lado

Em várias cidades italianas as autoridades estão a retirar, retrospectivamente, o nome das mães não-biológicas em casais de lésbicas, das certidões de nascimento das suas filhas e filhos.

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No dia 28 de Julho, muitas e muitos de nós estiveram nos protestos de rua que ocorreram em Itália e em várias outras cidades europeias, incluindo em Lisboa e no Porto, em solidariedade com as famílias LGBTI+ italianas e contra as novas decisões do governo de extrema-direita de Giorgia Meloni e do Ministério Público italiano.

Meloni ordenou às autoridades locais italianas que parem de registar como progenitoras, nas certidões de nascimento, duas pessoas do mesmo sexo, registando apenas a mãe ou pai biológico. A isto seguiu-se a decisão do Ministério Público de, em várias cidades italianas, retirar, retrospectivamente, o nome das mães não-biológicas em casais de lésbicas, das certidões de nascimento das suas filhas e filhos.

Estas decisões aproveitaram o vazio legal existente em Itália, dado que as uniões civis entre pessoas do mesmo sexo foram legalizadas em 2016, mas a oposição arcaica da Igreja Católica implicou que esta mudança legislativa não tenha dado direitos claros a casais do mesmo sexo para adotarem ou recorrem à procriação medicamente assistida no país, onde estas formas de parentalidade são apenas possíveis para casais heterossexuais.

Até agora, casais de pessoas do mesmo sexo apenas puderam ter filhas/os com o apoio de outros países onde estas formas de família são legais. Depois, em Itália, as decisões sobre os direitos destas famílias sobre os seus filhos/as, foram sendo feitas caso a caso pelos tribunais, ainda que algumas autoridades locais tenham decidido tomar uma posição mais clara, apoiando-as ou proibindo-as de forma unilateral.

Giorgia Meloni parece tentar assim cumprir a ameaça feita antes de ser eleita: “Sim às famílias naturais! Não ao lobby LGBT!”, com isso mostrando como não há nada que seja "natural" em si – o que se define como natural ou como não-natural são sempre e só projetos políticos, neste caso o do retorno do fascismo a Itália.

Este retorno, em forma de "caça às bruxas", como descreveu a ativista Alessia Crocini, da Associação Famiglie Arcobaleno, que violenta e destrói as famílias de lésbicas, com repercussões inimagináveis para as crianças que delas fazem parte, tem horrorizado muitas e muitos de nós.

Mas muitas das mesmas pessoas que se dizem horrorizadas com isto são as que, quando estão com a nossa família, fazem comentários heteronormativos e discriminatórios, precisamente assentes na biologia e genética como únicas bases das relações familiares "verdadeiras" ou "reais".

Como família de duas lésbicas, mães de uma criança, e sendo uma de nós a sua mãe biológica, já perdemos a conta ao número de vezes em que pessoas, tanto conhecidas como de serviços públicos e privados, tanto LGBTI+ como heterossexuais, mas que sabem que somos uma família homoafetiva, interagem connosco com comentários como "mas qual das duas é a mãe?"; ou, sabendo quem é a mãe biológica, afirmando "a criança é mesmo parecida com a mãe!", referindo-se à mãe biológica, claro, como se a medida do amor parental e a sua veracidade fossem função do número de semelhanças genéticas entre mães/pais e filhas/os; entre outros comentários heteronormativos afins.

São as crenças associadas a estes comentários que explicam o que está a acontecer agora em Itália. São, aliás, estas mesmas crenças que servem também o propósito da Igreja Católica e da extrema-direita de rejeitar as relações entre pessoas do mesmo sexo por considerá-las antinatura e antibiologia. É ainda este poder atribuído ao biológico que permite que seja apenas a quem é branco, homem, cisgénero, heterosexual, capacitista, que as nossas sociedades continuam a dar o direito inalienável de existir.

Por isso, todas e todos temos que desconstruir e contestar a primazia da biologia como base de relações familiares e afetivas significativas, para podermos viver em sociedades em que possamos ter relações e famílias que não sejam aquelas que a Igreja Católica e a extrema-direita ditam.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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