Em matéria de castas autóctones ninguém nos apanha
Líder mundial na técnica de conservação e multiplicação da genética da videira, Portugal registará em breve novas castas (mais ainda). Para que serve tudo isso? Para oferecemos, cá dentro e lá fora, vinhos que só podem nascer neste país. O projecto Terroir só poderia começar por aqui – pelas nossas castas e por vinhos que, por enquanto, são um bocadinho fora da caixa.
É provável que, lá para o final do ano, Portugal registe mais uma quinzena de novas castas. Seremos, assim, o país com mais castas autóctones no mundo. Aliás, se tivermos em conta as dimensões territoriais comparadas, já somos campeões. Vejamos. Portugal terá qualquer coisa como 250 castas. Itália, mais 10. Mas por cá temos 2,7 castas autóctones por quilómetro quadrado, enquanto os italianos têm uma. Os espanhóis e os snobes dos franceses não vão além de 0,4 castas por quilómetro quadrado. Mais, em matéria de genótipos (identidade genética dentro de cada casta), “França tem 20 mil registos e Portugal tem 30 mil, sendo que o objectivo nacional é chegar em breve aos 50 mil genótipos”, garante-nos Antero Martins, investigador de genética da videira, professor jubilado do Instituto Superior de Agronomia (ISA) e responsável técnico da Associação Portuguesa da Diversidade da Videira (Porvid).
O aparecimento de novas castas resultará de dois projectos de investigação autónomos. Um da responsabilidade da Porvid e outro do Departamento de Agronomia da Universidade de Trás-os-Montes e Alto do Douro (UTAD). Se no primeiro caso os especialistas estão a analisar cinco mil colheitas genéticas realizadas em vinhas velhas, entre 2020 e 2021, no segundo, e como confirmou ao Público a investigadora Ana Alexandra Oliveira, da UTAD, “já estão identificadas novas castas – umas quatro –, descobertas nas vinhas velhas de Trás-os-Montes e através de testes genética molecular”. Que castas? “Bom, por enquanto são só códigos. Os nomes chegarão mais tarde”, diz a investigadora que trabalhou em parceria com Isaura Castro, especialista da UTAD na área da genética molecular.
O leitor poderá dizer que tudo isso é muito bonito, mas, no fim das contas, quem ganha dinheiro neste mundo competitivo do vinho são os franceses, os italianos e os espanhóis. Pois, mas tal não deve impedir que as administrações públicas, as empresas e os cidadãos conheçam esta riqueza que é estratégica no curto, médio e longo prazo.
É por isso que o projecto Terroir arranca com diferentes trabalhos dedicados às castas autóctones. Em primeiro lugar, porque são as castas que, na ligação com o clima e os solos, nos diferenciam no mundo do vinho e, em segundo lugar, porque devemos saber que Portugal é pioneiro e líder internacional na metodologia de preservação e propagação da biodiversidade da videira. Só mais um cheirinho: cada casta, em si, é um mundo genético muito rico e diverso, medido cientificamente pelos tais genótipos, que são responsáveis por determinados comportamentos de uma planta (uns dão mais álcool e outros dão mais acidez, uns dão mais cor e outros resistem melhor ao calor, à seca ou às pragas). Uma casta pode, por exemplo, ter 10 genótipos (pobre) enquanto outra pode apresentar 200 ou 400 (é riquíssima e estará presente no território há centenas de anos).
Selecção clonal vs. policlonal
Deve-se ao muito discreto Antero Martins o desenvolvimento de uma escola de estudo, conservação de biodiversidade e multiplicação da videira, que leva o nome de selecção policlonal, por oposição à velha escola (ainda hoje se pratica em muitos países) que é a selecção clonal. Expliquemos com mais detalhe.
Como é possível ver no trabalho multimédia “As Castas são filhas da mãe – e do pai”, recentemente publicado na página do projecto Terroir, na videira, como nos animais que o homem domesticou ao longo de milhões de anos, a preocupação foi sempre seleccionar e cultivar os melhores espécimes e abandonar os mais fracos. No caso da videira, e se nos aproximarmos do nosso tempo, verifica-se que, a partir do século XIX, investigadores e agricultores alemães levaram esse processo de selecção a um nível – a tal selecção clonal – que se começou a perder irremediavelmente a biodiversidade da videira. Na Alemanha, em primeiro lugar, e depois no resto do mundo. Ou seja, em cada casta escolhiam-se os melhores clones (os mais produtivos ou os que davam mais álcool) e eliminavam-se os outros. E assim passámos a ter vinhas cientificamente produtivas, mas geneticamente pobres. Numa linguagem mais desbragada, passamos a ter vinhas desenhadas pela tese do eugenismo.
Ora, Antero Martins, que no início da carreira ainda estudou pela velha escola, percebeu, a dada altura, que a selecção clonal era, nas suas palavras “um erro gravíssimo e de efeitos devastadores”. Começou, então, a fazer tudo ao contrário. Isto é, criou uma vasta equipa que andou dezenas de anos a calcorrear as vinhas de todo o país, no sentido de capturar o maior número de genótipos possível de cada casta. Depois, construiu em Pegões aquilo a que nós, no Terroir, chamamos de Arca de Noé, que é o maior campo de conservação dessa riqueza intravarietal das castas portuguesas (um banco de germoplasma). A partir daqui, começou a distribuir este material vegetativo por cerca de 200 campos experimentais em todo o país, que têm por objectivo fornecer grande riqueza intravarietal das castas aos agricultores que queiram plantar uma nova vinha de uma qualquer casta. Esta escola passou a ser conhecida como selecção policlonal.
Além das preocupações com a conservação genética das nossas castas (numa altura em que nem tinham sido descobertas as palavras sustentabilidade e biodiversidade), a escola de Antero Martins assentou em dois princípios: primeiro, responder às tendências e, segundo, aumentar a rentabilidade dos produtores. Vamos por partes.
Diversidade à prova de modas
Como o vinho é um produto de modas, a forma de responder às mesmas é conservar a variabilidade genética de uma mesma casta. Por exemplo, durante os últimos 20 anos, a moda foram os vinhos carregados de cor, alcoólicos e pesados. Hoje, começam a ser ultrapassados por vinhos mais leves e frescos. E, por causa disso, alguns produtores já se aproximam da equipa de Antero Martins – que hoje tem como sucessora e com reconhecimento internacional a professora Elsa Gonçalves – para a pedir uma selecção de clones de determinada casta que dê uvas mais ricas em ácidos, fundamentais para a produção dos tais vinhos mais frescos.
Como daqui por 10 ou 20 anos as modas serão outras, a mais-valia da escola policlonal é a capacidade de responder aos desafios, pelo facto de existir em Portugal um banco de germoplasma riquíssimo. Pequeno exemplo, a casta Arinto tem centenas de genótipos conservados – prontos para o que der e vier.
Quanto à questão do aumento de produção, é tudo “muito simples”, como explica Antero Martins. “Se eu tiver numa vinha de uma casta com dois clones, mesmo que muito produtivos, fico totalmente exposto às condições climáticas ou às pragas, pelo que posso perder tudo num determinado ano se houver uma onda de calor ou muita chuva. Mas se em vez de dois clones eu tiver entre 7 a 20 clones da mesma casta, eles vão ter todos comportamentos diferentes face ao tempo (uns não vão produzir e outros vão ter bons rendimentos), mas, no ciclo vegetativo anual, eu tenho ganhos de rendimentos que podem chegar aos 46 por cento [ver quadro]. Se uma casta é o somatório da sua diversidade genética, uma vinha é tanto mais segura e tanto mais rentável quando mais anti-eugenista for.
Ou seja, a escola portuguesa da selecção policlonal é um quatro em um: a) cria um imenso banco de germoplasma das videiras autóctones; b) garante essa riqueza para o futuro (consoante as necessidades e as modas); c) disponibiliza material policlonal aos agricultores; e d) aumenta os rendimentos destes. De Trás-os-Montes ao Pico, o professor Antero Martins, que aos 82 anos ainda anda por vales e montes deste país, qual Indiana Jones das videiras portuguesas, já merecia uma festa em cada uma das 14 regiões vitivinícolas do país. Sem grandes salamaleques, que ele não é disso. Num país decente, seria o mínimo. A malta do vinho deveria ouvir o poema Abraço, de José Tolentino de Mendonça (faz um bem que nem se imagina) e escolher um dos vários abraços propostos para dar a Antero Martins.
O Douro cheio de terroir
No lançamento do projecto Terroir, seleccionámos vinhos com castas portuguesas mais desconhecidas (Tintinha, Cornifesto, Uva-Cão, Tinta Grossa, Tinta Gorda, entre outras). Hoje falamos de um tinto do Douro que é um retrato perfeito do que é um vinho português cheio de terroir. E porquê? Porque é feito com castas autóctones, com um vasto leque de castas (Bastardo, Marufo, Tinta Francisca, Touriga Fêmea, Tinta Amarela, Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinto Cão), sendo que algumas destas castas (18% do lote) são provenientes de vinhas velhas.
É por isso que este Castas Escondidas 2018 é notoriamente um tinto do Douro, mas não um Douro de fotocópia. Numa generalização grosseira, muitos Douros de fotocópia têm a explosão aromática da Touriga Nacional, o esqueleto da Touriga Franca, as baunilhas da barrica, o álcool em doses generosas e por aí nos ficamos. Por juntar oito castas adaptadas ao Douro e por não terem passado por barricas novas de 225 litros (Deus iluminou Luís Sottomayor), este Castas Escondidas é um vinho desafiante e fresco, que dá muito prazer a beber (mais do que dois copos) e que fica mesmo a ganir por uma carne de bovino estufada.
Nome Castas Escondidas 2018
Produtor Sogrape
Castas Bastardo, Marufo, Tinta Francisca, Touriga Fêmea, Tinta Amarela, Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinto Cão
Região Douro
Grau alcoólico 13,5 por cento
Preço (euros) 29
Pontuação 92
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Muita fruta vermelha e casca de fruta vermelha, com algum alcaçuz, tudo delicado, nota vegetal. Na boca, frescura, vivacidade, ligeira adstringência e sensações vegetais. É dos tais vinhos que estão sempre a rodar no copo para descobrimos mais e mais aromas.