Sento-me sempre à frente, é mais humano

Adoro gente com humor, adoro gente com bom coração genuíno, e adoro conectar-me espontaneamente com desconhecidos. E, por isso, sento-me sempre à frente, é mais humano.

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Chamei um TVDE para ir para a baixa do Porto. Fiquei curioso porque o Ricardo tinha 5 estrelas na sua avaliação. Não era 4,97, era 5,00. Pensei para mim “Ui…este gajo até deve fazer massagens nos ombros” para ter uma classificação tão imaculada.

Entro sozinho e sento-me na frente. Eu sento-me sempre na frente. Gosto de humanizar os contactos aleatórios com desconhecidos. No banco de trás sozinho, sinto-me pouco humilde, e disso não gosto. Gosto de me sentir igual, e lado a lado é mais honesto com a minha visão da vida.

Cumprimento, faço umas perguntas de circunstância sobre como está a correr este início de noite, e o negócio no geral. O Ricardo é um pouco mais novo do que eu, tem sotaque de quem é do Porto, e vai respondendo às perguntas de uma forma serena sem nada de especial a declarar, até que tudo mudou quando lanço a seguinte pergunta: “Isto a partir de certa altura com os bêbados é que deve ser mais complicado, não?” A partir daqui, a curta viagem foi como se tivéssemos apanhado uma zona de turbulência no avião, fui aos soluços e em desequilíbrio no meu assento até ao destino.

“Você nem imagina, f***-se… Já me aconteceu de tudo, de tudo! Quer dizer, nunca tibe nenhum bebé no banco de trás, mas de resto já bi de tudo. Já me bomitaram o carro todo várias vezes… normal, também já sabemos para o que bamos… (eu achei muito humano este apontamento)... Já bárias vezes tive que ajudar as pessoas a entrar em casa… já tibe que levar alguns até à cama de tão bêbados que estabam… Uma vez tibe que ajudar um a saltar o muro de casa, e tibe que saltar o muro com ele para o ajudar… já bi de tudo!”

Eu já me estava a rir quer com o conteúdo, quer com a forma, e o tom ia claramente em crescendo como quem só estava no aquecimento, e “espetáculo”, além de muito humor, era um humor humano.

R: “Uma bez… sentou-se sozinho no banco de trás… um gajo muito gordo, e eu bi logo que ele binha todo bêbado… Era chinês… ou japonês… sei lá! (eu comecei logo a rir-me)… Quando chegámos a casa do gajo, o gajo estaba a dormir ferrado…”

G: “E então?”, puxava eu, genuinamente curioso.

R: “Então… o gajo não me saía do carro, e não acordaba nem por nada. Parecia que estaba morto… mas estaba bibo porque ainda respirava… E eu… f***-se, como é que eu vou tirar este gajo daqui… eu abanava-o, dába-lhe umas chapadas e ele… nada!”

G: “ E depois?”

R: “ E depois, tibe que chamar dois colegas meus que estabam por perto para me ajudar… Oube. Éramos três… e nada! O gajo era gigante… parecia um lutador de sumo ou o c******… e não se mexia, e não acordaba. Estábamos três em cima dele à chapada no homem, a tentar arrastá-lo para fora do carro, e nada!

(eu estava a adorar esta história, parecia que estava lá dentro como se fosse um filme imersivo.)

G: “E depois?”

R: “E depois beio o porteiro do prédio dele quando se apercebeu da situação… Éramos quatro a tentar… à chapada… para ele acordar, e a tentar arrastá-lo… e nada.”

G: “Mas quê, tipo saco de batatas?”

R: “Saco de batatas! Até que o porteiro foi de madrugada tocar à porta de casa dele… Oube! Bem de lá uma senhora toda japonesa… ou lá o que é… metro e meio de gente… entra para dentro do carro… também à chapada no gajo, e aos gritos com ele lá na língua deles… e connosco sempre a tentar puxar o gajo fora do carro, e ele não acordaba, nem por nada!”

G: “E depois?” (neste momento eu já era capaz de pagar para ouvir mais…)

R: “E depois, ele lá foi aos poucos. Debe ter sido alguma merda que a mãe lhe disse ou o c*******, e com a ajuda dos quatro lá o fomos levando até ao prédio com a velhota aos gritos lá na língua deles…”

Ufff… eu já estava cansado de tanto me rir, já me doía a barriga de tantos abdominais que eu estava a fazer a cada gargalhada.

R: “Uma bez, tive uma chamada, ali para os arredores de Balongo, num sítio no meio do nada, onde eu só bia campos à bolta, a meio da noite, sem ninguém… Tou a chegar ao local, e bejo uma mulher alta… bestida à cowboy… Chapéu, botas… tudo!”

E eu a pensar para mim: “Ui… isto agora vai por caminhos ainda mais interessantes”, e mantive as minhas achegas como marca-passo.

G: “E então?”

R: "E então… tibe medo! Fuuoooggooo. Bestida à cowboy no meio do nada!”

G: “Mas quê, podia vir com pistolas?”

R: “Sei lá! Ou isso, ou ter lá um amigo à minha espera, para me roubar o carro! É que eu quando abro uma porta, abro todas!”

G: “ E depois?”

R: “Depois nada, binha duma festa de mascarados…”

Final da história, alguma desilusão perante as expectativas, mas é o preço de ser real e não ficção. Eu chorava a rir, e já lhe dizia que ele tinha que escrever um livro.

R: “Já bi de tudo. Uma bez entrou-me uma senhora, aos gritos: “Aiiii… Aiiii… estou a ter um ataque do coração… leve-me rápido, rápido!”

G: “Uiii… e então?”

R: “ E então, eu disse-lhe: “minha senhora, eu lebo-a, mas não será que debia ter chamado uma ambulância?”

Eu nunca disse nada sobre mim, nem disse que era médico, e só chorava a rir. E o Ricardo também se matava a rir enquanto revivia as suas histórias.

R: “Uma bez, entra-me aqui uma rapariga que só choraba…”

G: “Uii… e então?”

R: “Então eram problemas de amor, binha de casa do namorado ou marido, sei lá… e só choraba…”

G: “E o que lhe disse?”

R: “Sei lá… disse-lhe que ia correr tudo bem. O que é que um gajo há-de dizer?” (ia partilhando de uma forma muito genuína, mas sempre às gargalhadas e eu ainda mais) “Disse-lhe que ela ainda era muito nova e bonita… eu nem vi se era, mas achei melhor dizer… e que haberia de encontrar o melhor caminho… É que um gajo não sabe! Não sabe se há de dizer para boltar para o gajo, ou para se librar dele de bez… É que eu não sei o que é melhor para ela…”

Isto foi muito engraçado, foi dos momentos mais hilariantes que eu tive nos últimos tempos, mas foi, acima de tudo, muito humano. Saber que não se deve dar conselhos a quem está a sofrer de amores é de uma grande inteligência emocional e humana.

Para se conhecer os verdadeiros encantos do Porto, é preciso perceber o lado poético do vernáculo e a beleza do sotaque ou dos sotaques que são tantos, e que até explicam as ligações históricas de quem, como os espanhóis, troca os "v" pelos "b". A escrita tem regras, mas a fala é livre, de estilo e preconceitos. E ainda bem que assim o é.

Adoro gente com humor, adoro gente com bom coração genuíno, e adoro conectar-me espontaneamente com desconhecidos. E, por isso, sento-me sempre à frente, é mais humano.

As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel António da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras

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