É fácil perdê-la. A esperança parece, por estes dias, um bem raro. Pode a Humanidade sobreviver a décadas de incúria? Podemos sair do inferno em que nos enfiámos, com incêndios e cheias incontroláveis, recordes em cima de recordes, medo em cima de desespero em cima de mais medo? Por que razão acreditar numa saída, se tanto continua a ser destruído? Ao mesmo tempo, outros acreditam que “vai ficar tudo bem” porque, argumentam, a situação da Terra não pode ser tão grave como a pintada pelos activistas e porque o capitalismo encontrará uma solução.
A escritora norte-americana Rebecca Solnit, autora de livros como Esta Distante Proximidade, As Coisas que os Homens me Explicam e o mais recente Orwell’s Roses (um dos seus vários livros sem edição em Portugal), não está num lado nem noutro. “A esperança é o contrário do optimismo e do pessimismo e o desespero”, explica por videochamada. “O optimismo diz que o futuro vai ser óptimo, que não temos de fazer nada. O pessimismo e o desespero dizem que é tarde demais, que o futuro vai ser terrível, que não há nada que possamos fazer. Ambos assumem que o futuro já está decidido”, completa. O que é a esperança, então? “Um compromisso com a incerteza radical”, um território “onde há espaço para actuar”.
Nos últimos anos, a causa do clima ganhou preponderância na escrita e no activismo de Rebecca Solnit, a quem o New York Times já chamou “a voz da resistência”, um ícone dos movimentos progressistas. Nome importante da não ficção, Solnit diz ao Azul que não vai escrever nada de substancial que não seja, de uma forma ou outra, sobre clima. Quer ser uma “melhor activista”.
Conversa connosco a partir da Califórnia. Na videochamada entrou também Thelma Young Lutunatabua, activista climática que nasceu no Texas e vive nas ilhas Fiji. Ambas editaram Not Too Late, publicado há meses pela Haymarket Books, dos Estados Unidos. Not Too Late é também o nome do movimento que Solnit e Lutunatabua lançaram em 2022 para fornecer “informação factual” e “bons enquadramentos” para a luta climática, resume a primeira.
“Foi interessante para mim constatar que as pessoas mais informadas não estão desesperançosas. Os cientistas, os activistas e quem organiza protestos compreendem a situação muito bem: coisas terríveis vão acontecer, mas o pior cenário é muito pior do que o melhor cenário. Temos as soluções, sabemos o que fazer, mas vencer os poderes instituídos é uma luta épica. Muito do desespero está em pessoas que não estão muito bem informadas. Não sabem que temos as soluções. Pensam que a vida na Terra, que os seres humanos ou a civilização vão como que colapsar nas próximas décadas. Pensam muitas coisas que não são baseadas na melhor informação”, diz Solnit.
Doses generosas de informação e motivação foi o que Solnit e Lutunatabua quiseram reunir em Not Too Late, onde encontramos cientistas climáticos, activistas, artistas e “visionários” de variada índole. “Não havia um livro que dissesse: está aqui alguma ciência da atmosfera, o que está a acontecer com as [energias] renováveis, e que tivesse também algumas coisas sobre organizar a luta, sobre poder, sobre trabalho em comunidade, sobre perspectivas indígenas”, descreve Solnit.
Not Too Late dá voz a activistas de territórios como as ilhas Fiji e Marshall, no oceano Pacífico, lugares na “linha da frente” da subida do nível dos mares. Lutunatabua entrevista dois Pacific Climate Warriors, rede liderada por jovens activistas. A máxima do grupo diz tudo acerca da sua atitude de resistência: “Não nos estamos a afogar, estamos a lutar.”
“Os sítios onde sempre houve mais esperança são frequentemente os que estão na linha da frente”, sublinha Lutunatabua ao Azul. “Pessoas que estão a ser mais afectadas pelas mudanças climáticas e que, por isso, não têm outra escolha que não continuar a lutar. Por isso, têm de construir a sua própria esperança.” No livro lemos também que nas ilhas Carteret, na Papua-Nova Guiné, frustradas com a lentidão do governo, um grupo de mulheres decidiu assumir o trabalho de realojar as populações mais afectadas – o nome da organização significa “navegar as ondas por nós próprios”.
Estas lutas podem inspirar pessoas que passam o dia agarradas ao smartphone a consumir relatos apocalípticos sobre o estado do planeta. O pós-título do livro é elucidativo: é preciso “mudar a história do clima”, passando “do desespero à possibilidade”.
Esperança na escuridão
Esperança é coisa que não falta aos livros de Rebecca Solnit. Em A Paradise Built In Hell (2009), louva o altruísmo e a cooperação manifestados pelas vítimas de desastres naturais (terramotos, os efeitos do furacão Katrina em Nova Orleães, em 2005) ou provocados (os ataques de 11 de Setembro de 2001, em Nova Iorque).
Naquele livro, Solnit desafia as visões tradicionais que nos dizem que nesses momentos se assiste ao pior das pessoas (o egoísmo, o salve-se quem puder). A maneira como as pessoas respondem a catástrofes “mostra uma natureza humana muito resiliente e o nosso desejo profundo de significado, conexão, propósito, comunidade. Isso é muito diferente da versão da humanidade que recebemos do entretenimento, da cultura popular. E esse livro não é um livro sobre clima per se. Mas escrevi-o porque sabia que as alterações climáticas iriam produzir mais e mais desastres – furacões, terramotos, fogos, ondas de calor, clima extremo, secas.”
Em Hope in the Dark (2016), um dos melhores livros do século para o Guardian, faz a defesa da esperança como um compromisso para a acção - quis contrariar o pessimismo que por vezes se instala nas hostes progressistas, pondo em destaque uma longa e negligenciada história de vitórias que mudaram o mundo (às vezes, de forma indirecta).
No mais recente Orwell’s Roses (2021), foca-se num lado menos conhecido da biografia de George Orwell (o seu amor pela jardinagem) para entrelaçar a luta política de esquerda, em que se revê, com a necessidade de beleza nas vidas dos humanos. Para Orwell, “a natureza não era apenas prazer e refúgio, mas um terreno para o imediato, o corpóreo, o empírico, que ele via como uma base de fortalecimento da imaginação e do eu, necessários para combater o autoritarismo e o totalitarismo. É, definitivamente, um livro sobre o clima”, diz-nos Solnit.
Espera que “mais e mais artistas” façam da luta climática “parte das suas vidas e do seu trabalho”. E explica porquê: “Estamos numa batalha da imaginação e a arte vai ser muito importante para ajudar as pessoas a ver.” É comum ouvir-se que a luta climática tem um custo grande: a redução do conforto material que o capitalismo deu a parte significativa da população. Mas a arte “pode mudar esta história”. “Ouvimos constantemente – e isto é uma espécie de propaganda ao capitalismo, ao consumismo e aos combustíveis fósseis – que vivemos numa era de abundância. Mas vivemos numa era de escassez, de ar puro e água limpa, de solos saudáveis para gerar comida; de escassez de esperança no futuro, de ligações sociais e comunidade”, contrapõe.
Thelma Young Lutunatabua recorre a Kathy Jetn̄il-Kijiner, das Ilhas Marshall, uma das vozes de Not Too Late, e ao poema que escreveu com uma poeta indígena da Gronelândia, Aka Niviâna – é a literatura a unir o gelo que derrete na terra de uma ao mar que sobe e engole a da outra. “Precisamos de arte que mostre como estamos ligados de formas que nem sequer compreendemos”, diz Thelma. “A poesia está a lidar com o clima de uma forma que outras formas de arte não estão.”
A arte, acrescenta Solnit, pode ajudar-nos a “enfrentarmos o que nos aterroriza”, “a ligarmo-nos”, “a sonharmos em grande”. A mudar o cenário. “Precisamos de novas ideias sobre heroísmo, novas ideias sobre comunidade, novas ideias para compreender a natureza do poder e da esperança. Novas ideias do que constitui uma vida boa.” Para Solnit, ideias budistas, indígenas e científicas sobre a “não separação” e a “interligação” das formas de vida são particularmente úteis. “Dá-nos uma noção de nós mesmos no mundo como algo não isolado. O individualismo pode ser trágico. E isso é equipamento para enfrentar a crise climática”, missão que só se cumpre colectivamente.
Nos últimos anos, parte do discurso sobre a destruição do planeta voltou-se para as acções individuais, a “pegada” de cada um: as palhinhas de plástico que usamos, o lixo que não reciclamos, a carne que comemos, os carros que conduzimos. “O nosso amigo Bill McKibben [conhecido ambientalista], co-fundador do [movimento ambientalista] 350.org, costumava dizer algo maravilhoso às pessoas que lhe perguntavam o que podiam fazer enquanto indivíduos: ‘Pare de ser um indivíduo.’ Queria dizer: junte-se a um grupo, como indivíduo tem muito pouco poder.” Para Solnit, “o foco na virtude individual não só nos restringe ao ‘eu’ individualizado que é uma parte tão importante da tragédia do capitalismo, mas também nos impede de sermos poderosos de formas que interfeririam com outros poderes – o financeiro, o político, o da indústria dos combustíveis fósseis”.
“Demasiadas vezes, o mundo diz-nos que é tudo acerca do indivíduo que muda o mundo quando, na verdade, a mudança acontece colectivamente”, acrescenta Thelma Young Lutunatabua. “Esperamos que as pessoas falem com os vizinhos, com outros na sua cidade, no seu estado, e comecem a agir juntos. Encontra-se a esperança quando não pomos o peso do mundo nos nossos ombros, encontra-se a esperança quando agimos juntos. Esperamos que as pessoas que leiam este livro sejam inspiradas a fazê-lo.” A certa altura da conversa, Thelma desaparece do ecrã. Volta minutos depois, com um bebé ao colo. “Escrevi este livro quando estava grávida deste bebé. Ele tornou-se símbolo da esperança para mim.”
O herói é um problema
Voltamos aos livros, às canções, aos quadros, aos filmes. Precisamos de melhores histórias, como as que Solnit conta nos seus livros, histórias que desafiem o pessimismo e o imobilismo? O mesmo Bill McKibben, num famoso artigo publicado em 2005, insurgia-se contra a passividade da arte face à crise climática: “Onde estão os livros? Os poemas? As peças de teatro? O raio das óperas? Comparemos isto com, digamos, o horror da sida nas últimas duas décadas, que produziu uma impressionante explosão de arte, que, por sua vez, teve um efeito político real.”
Dezoito anos depois, Solnit vê alguns exemplos de arte “maravilhosa e eficaz”, mas admite que “muitos artistas não estão envolvidos ou perceberam como podem captar a imaginação das pessoas. Conheço-me como escritora. Escrevo muito sobre feminismo, as coisas mais pessoais nas nossas vidas, os nossos corpos, a nossa sexualidade, o nosso género, as nossas relações, o perigo físico que corremos, os nossos direitos humanos. É tão pessoal e tão fácil escrever acerca disto. Escrever sobre a parte alta da atmosfera ou políticas de energia não é tão natural. Mas espanta-me pensar que, apesar dos limites do papel da arte, vencemos a maior batalha que o movimento climático tem de vencer: a batalha da imaginação do público.”
Ainda assim, diz que “precisamos de mais arte” sobre o futuro (e o presente) da Terra. Em 2019, Solnit escreveu o ensaio “When the hero is the problem” (quando o herói é o problema). Lamentava a falta de atenção dada pela arte à acção de colectivos. É assim nas velhas narrativas mitológicas gravadas em papiro, é assim nos novíssimos filmes de acção com imagens geradas por computador: o herói é, por regra, solitário, sobredotado. “Sinto que não vi bom cinema que nos mostre como o mundo é mudado por colectivos, seja a queda do muro do Berlim, o fim do apartheid na África do Sul, para nomear duas coisas da minha juventude, ou a forma como encaramos hoje o ambiente.”
Afinal, como diz no livro a escritora e activista norte-americana Adrienne Maree Brown, “a imaginação é um músculo que, para muitos de nós, vai atrofiar se não for usado, nomeadamente devido à pressão do medo constante” – e medo é, muito compreensivelmente, o que muitos sentem quando o assunto é clima. Escreve Solnit no primeiro ensaio do livro: “É tarde. Estamos profundamente metidos numa emergência. Mas não é tarde demais, porque a emergência não terminou. O desfecho não está decidido.”