Em Portugal, há uma “França sem Paris” e já sem ouro. Mas com um casal nonagenário
José Luís nasceu em 1928, Alcides Graça em 1932. Estão casados há 67 anos e nunca deixaram a aldeia que os viu nascer, a França de Bragança, onde até já houve muitas coisas. Mas já viram o mar.
"Tivesse eu um euro por cada foto que tiram a essa placa!" No único café de França — que já foi uma alfaiataria — também se conta a história, que até parece ser a única história da aldeia aninhada entre dorsos montanhosos. Que nos tempos da ditadura, quem traficava pessoas de cá para lá usava a mesma placa para ludibriar quem fugia do país. Muitos foram os pobres que durante a noite cerrada ficaram apeados na aldeia de França, a mais setentrional freguesia do concelho de Bragança, acreditando ter chegado em segurança a França, o país dos seus sonhos.
Não foi o caso de Alcides Graça Rodrigues e de José Luís Afonso, as primeiras pessoas que a Fugas avistou embrenhadas no campo. "Nascemos cá e morreremos cá. Nunca emigrámos. Nunca saímos daqui". Ele nasceu em 1928, ela em 1932. Contas fáceis de fazer. 94 e 91 anos, casados há 67 "e sempre amigos", dois filhos e as quatro mãos moldadas e gastas pela terra, que lhes corre no sangue. "Nunca fui para França nem para lado nenhum. Foi uma vida de muito trabalho. E nunca passámos fome, graças a Deus", atira José Luís, enxada ao ombro e um fundo de um balde cheio de "bichos das batatas" que andou a catar. "Ficámos nesta França sem Paris", sorri Graça "Marroca" — que o pai andou "por lá, na 'guerra de Marrocos'".
"Aqui, colhia-se tudo", recorda ele, todos os dias no campo "para gastar a terra". "Era diferente. Havia alegria por aquele serro fora a fazer a serrada com a foice para cegar centeio", completa ela, saudades nos olhos, enquanto deixa para trás a jeira. "Aquele alto era todo cultivado. Andava lá toda a gente da aldeia. Temos tudo daqui. Isto era um jardim, um jardim de abóboras, de batatas, de feijões... parecia um jardim. Tudo semeado com vacas. Tudo de comer. Era uma alegria. Agora, não há animais. Só ovelhas. As vacas enchiam os lameiros... agora está tudo perdido. Aqui também quase que não há gente. Agora é triste. Não é como dantes. Ajudávamo-nos uns aos outros. Agora já não. Agora já há silvas." "Éramos como dois homens a trabalhar", remata ele. Ainda são.
Situada na orla fronteiriça, e abarcando ampla parcela do Parque Natural de Montesinho, o território de França — um dos três aglomerados populacionais que integram a freguesia juntamente com as aldeias de Montesinho e de Portelo — é cortado pelo Rio Sabor e pela Ribeira das Andorinhas e, em tempos idos, associado a outra excepcional riqueza que não a da vasta planura verdejante retalhada em pastagens e campos de cultivo. Muito provável é que essa jaza oculta no subsolo da freguesia, outrora com muitos recursos na mineração, quatro minas de estanho, três de ouro e de prata e uma apenas de ouro, filões aqui e ali documentados em registos locais.
Ainda há nas margens do Sabor vestígios de pedreiras e de buracos em abundância a modo de minas antigas. Lê-se na obra Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, de Francisco Manuel Alves, a que a Fugas teve acesso, "as areias do Sabor, junto ao lugar de França, envolvem em si ouro puro". E que "o Sabor, junto a França, é riquíssimo porquanto das suas areias se colhe ouro puro de que há poucos anos se aproveitou um sujeito da Corte que fez aí um trabalho notável com bastante lucro". Mas por aqui, nem no Café Sérgio Prada (Xexa Bar, para os amigos, que esta é terra de nomeadas e de alcunhas), se conta que (pelos anos de 1874) vinham "mulheres extrair ouro por meio de lavagens das areias do Sabor", junto à povoação.
Já houve ouro. Já houve outro café. Já houve um restaurante. Já houve uma escola primária. Em França, lugar de arvoredos, ouve-se "já houve" muitas vezes. Demasiadas. "Já houve mais gente", diz-nos Leonel "Lousada" ("às vezes, não é pelo primeiro nome que conhecemos as pessoas"), que, apesar da evidente desertificação ("casas e casas e casas e casas abandonadas"), contabiliza cinco nascimentos em França no ano passado. "Há sete ou oito anos, não entrava aqui nenhum estudante [no transporte para as escolas]. E agora já entram sete".
Já houve mais buliço em França, mais o que fazer. Hoje, passeamos entre o casario e cruzeiros atentos às siglas dos canteiros, às ardósias que serviam para cobrir as casas e às placas de xisto, monólitos naturais do tamanho de pessoas que ajudam a firmar os alpendres, feitos de madeira e de vigas, que são árvores completas. Fora dos caminhos da montanha, agrestes e custosos para peões — como o antigo fragueiro, que andava pelas fragas arrancando pedra —, ainda há louseiras e antas e penedos, esteios mais ou menos cúbicos ou alongados nas posições primitivas ou tombados porque lhes faltou a terra, por escavações de sonhadores de tesouros ou por o tempo a levar, pois o terreno é bastante declivoso.
Não chegámos a conhecer Joaquim "Manadas" Pereira, o fiel depositário da chave do moinho e do molho de chaves da Igreja Matriz (Igreja de São Lourenço). Mas basta estacionar o carro junto à famosa placa e meter conversa com alguém no café — que não serve nada de comer — para chegar até ele ou até às suas chaves.
Vale a pena atravessar a aldeia até ao lugar do Salgueiral, onde corre a água da montanha que aí é desviada pelas levadas e comportas manuais. Uma delas faz accionar a engrenagem do moinho, à sombra de uma ginjeira e de uma cerejeira, junto à forja, que não está apta a receber visitas, assim como o antigo viveiro de trutas, à espera de um projecto de reabilitação. Ali, perto da placa que indica que chegámos a França, há uma praia fluvial muito procurada nesta altura do ano. Mais além, o Centro Hípico, também a precisar de cuidados.
As ruelas de calçada parecem todas convergir na bonita fonte de pedra — com peixes como nos jardins nas antigas estações e apeadeiros —, ao lado da casa onde vive o casal nonagenário, adega no rés-do-chão e lá em cima, na cozinha, com formas de bolo e alguidares de esmalte pendurados nas paredes, a mesa posta para os visitantes: broa de milho, bolachas de chocolate e vinho do pipo "encertado" na véspera. No quintal está escondido mais um segredo de França, um poço construído em 1792, data gravada na madeira. Por aqui, as coisas duram "uma vida inteira". José Luís e Graça não pensam em sair de França. Já estiveram em Lisboa e no Porto. E já viram o mar, em Espinho. "Só fomos aquela vez."