Goodreads era o futuro das críticas de livros — até a Amazon o comprar
Não é invulgar que a Amazon adquira propriedades a baixo custo em mercados que quer dominar, para as deixar definhar. É o caso do Goodreads, que “não foi bem mantido, actualizado ou acompanhado”.
É um site construído com base numa infra-estrutura tecnológica ultrapassada, o que fez com que o custo da sua revisão e actualização fosse um desafio que acabou por não valer a pena para o gigante do comércio electrónico, de acordo com antigos funcionários que falaram sob condição de anonimato para poderem discutir assuntos sensíveis. Na mesma linha, a limitada moderação manual de conteúdos e a falta de características de protecção permitem que os utilizadores se envolvam em assédio direccionado, o tal "bombardeamento de críticas" — que já resultou no cancelamento de livros e dos seus autores.
Alguns ex-funcionários afirmaram que a Amazon parecia satisfeita com a perspectiva de explorar os dados gerados pelos utilizadores do Goodreads, mas que, por outro lado, estava disposta a deixá-lo existir com recursos limitados.
Nos mais de 20 anos de história da Amazon, a empresa já fez dezenas de aquisições. Não é invulgar que tente adquirir propriedades a baixo custo em mercados que quer dominar, para depois as deixar definhar. Até há pouco tempo, a Amazon era proprietária do Book Depository e do site preferido dos entusiastas de fotografia, a DPReview, e opera ainda o site de descontos Woot, o site de coleccionismo AbeBooks e a base de dados de filmes IMDb.
O Goodreads "não tem sido muito bem mantido, actualizado nem acompanhado, como seria de esperar de uma rede social com ligações tão fortes a uma comunidade ou de qualquer aplicação em 2023", disse Jane Friedman, consultora na área editorial. "Parece que a Amazon o comprou e depois o abandonou."
A porta-voz da Amazon, Ashely Vanicek, afirmou por seu turno que "ao juntar-se à Amazon, a Goodreads acelerou sua missão de deliciar os clientes com a ajuda dos recursos e tecnologia da Amazon".
"Continuamos a investir e a fazer crescer a Goodreads como uma comunidade para leitores e autores", acrescentou, em comunicado. "Criámos oportunidades para a Amazon e o Goodreads inventarem novos serviços para leitores e autores."
O problema das avaliações com uma estrela
O mais recente incidente de grande visibilidade que envolveu o Goodreads aconteceu quando Elizabeth Gilbert — autora do best-seller Comer, Rezar, Amar — cancelou o lançamento do seu próximo romance depois de ter sido inundada com classificações de uma estrela. Nenhuma das pessoas que deixaram críticas negativas tinha lido o livro, que só deveria ser publicado em Fevereiro do próximo ano.
Mas como alguns leitores sentiram que o cenário do livro — a Rússia dos anos 1930 — era inadequado à luz da guerra em curso na Ucrânia, usaram as classificações do Goodreads como forma de expressar a sua frustração. Mais tarde, Gilbert anunciou no Instagram que "não é a altura certa para este livro ser publicado".
É prática comum no mundo editorial lançar exemplares de livros de forma antecipada, para tanto para leitores como para críticos profissionais, de modo a gerar algum burburinho antes da publicação. Mas o Goodreads permite que qualquer utilizador — e não apenas aqueles que receberam cópias antecipadas — deixe avaliações meses antes de os livros serem lançados. Os autores que se tornaram alvos de campanhas de "bombardeamento de críticas" dizem que há pouca moderação ou recursos para denunciar o assédio. Os escritores que lidam com stalkers apontam o mesmo problema.
Ao contrário do marketplace da Amazon, o Goodreads "foi concebido de forma a não ser necessário comprar um produto para fazer uma crítica a um livro", lembrou Kristi Coulter, ex-funcionária da Amazon, que trabalhou no mundo editorial e é autora de um livro de memórias, Exit Interview, sobre a sua experiência. "Isso torna-o propício a abusos."
Missão: vender tudo a toda a gente
A Amazon comprou o Goodreads em 2013 por 150 milhões de dólares, na esperança de que a comunidade online de amantes de livros e os dados que criaram sobre os livros a fizessem avançar a sua missão de vender tudo a toda a gente.
Mais de uma década depois, mesmo quando outras plataformas terem sofrido várias reinvenções, pouco mudou no Goodreads, um site bege onde os leitores podem classificar os livros de uma a cinco estrelas, escrever críticas e falar com outros leitores em fóruns da velha guarda, alguns dos quais com dezenas de milhares de membros.
"No seu apogeu, [o Goodreads] era mais uma ajuda para vender livros do que um obstáculo", defende Maris Kreizman, autora que tem um podcast sobre livros para o site Literary Hub.
Mas o Goodreads manteve-se tão desajeitado no seu design e é tão difícil de usar, defende Kreizman, que já não está a cumprir a promessa de outrora, de "juntar os amantes de livros e criar novas comunidades".
"Sinto que a trajectória foi a seguinte: o Goodreads estava a inovar e a fazer coisas boas, era empolgante", disse. "E depois a Amazon comprou-o. Fim."
A primeira coisa que a Amazon queria que o Goodreads fizesse depois de o adquirir era criar uma aplicação para o Kindle, de acordo com um dos antigos funcionários.
O Kindle, lançado pela primeira vez em 2007, é um dispositivo extremamente popular para a leitura de livros e a Amazon estava ansiosa por alargar as suas possibilidades, introduzindo uma componente social. Na altura, a empresa estava a tentar entrar no campo das redes sociais, onde ficou para para trás face aos seus concorrentes, afirmou um antigo executivo da Amazon.
A aplicação Goodreads permitia que os leitores destacassem passagens e as partilhassem com outros leitores, uma característica que suscitou entusiasmo no meio académico sobre o possível futuro da "leitura social".
O aspecto social do Goodreads também era atractivo para os editores que, pela primeira vez, tinham acesso a dados sobre os tipos de livros que suscitavam conversas entre os leitores, argumentou o Los Angeles Times numa série de 2010 sobre leitura digital. Na altura, parecia possível que os dados do Goodreads pudessem alimentar um algoritmo de recomendação personalizado semelhante ao que o Spotify criou para a música.
Coulter trabalhou na Amazon de 2006 a 2018 e lembra-se de ter participado num jantar em Nova Iorque onde a direcção discutiu a compra do site pela Amazon.
"Havia interesse em utilizar os dados do Goodreads para ajudar a potenciar as funcionalidades do Kindle", recorda. "Havia todo um entusiasmo e uma dinâmica por detrás disso."
"Bloqueado enquanto produto"
Mas depois de a Amazon ter comprado o Goodreads, tornou-se cada vez mais claro que a tecnologia era antiga e os dados não estavam bem organizados, e que seria necessário um investimento significativo para actualizar o site, de acordo com dois antigos funcionários da Goodreads.
A razão pela qual "parece estar bloqueado enquanto produto", disse um dos ex-funcionários da Goodreads, é porque "foi dolorosamente lento para criar mudança". Como resultado, as características propostas, como um algoritmo de recomendação ou um feed de notícias para o Kindle alimentado pelo Goodreads, nunca foram para a frente.
Em grande parte, a Amazon deixou o Goodreads funcionar de forma independente. A empresa continuava a poder obter dados valiosos dos utilizadores do Goodreads, como críticas e informação sobre os géneros literários, bem como receitas de publicidade, sem ter de dedicar muitos recursos ao site, de acordo com o que explicaram três antigos funcionários.
Havia também a preocupação de que quaisquer grandes alterações à plataforma pudessem afugentar as pessoas. Um ex-funcionário comparou o Goodreads ao Reddit, fórum com 18 anos de existência, onde os utilizadores se estão a revoltar devido às modificações introduzidas no site. "As pessoas sentem que não podem irritar a comunidade", disse o antigo funcionário.
Em última análise, a Amazon atira para tantas direcções que é comum as equipas terem de tratar do próximo "objecto brilhante", afirmou Coulter. "Está em linha com o que já vi muitas vezes na Amazon", disse. "As pessoas distraem-se um pouco.”
E à medida que a Amazon perseguia outros objectivos, os autores, editores e leitores viram o Goodreads tornar-se cada vez mais tóxico.
Em 2014, a autora Kathleen Hale publicou um livro de ensaios, chamado Kathleen Hale Is A Crazy Stalker, sobre as lições que aprendeu depois de aparecer sem ser convidada na casa de alguém que lhe deixou uma crítica negativa no Goodreads. Os autores relataram ter sido extorquidos por golpistas que "bombardeiam" a classificação de um livro a menos que o autor lhes envie dinheiro. Ainda este ano, a editora de Sarah Stusek, autora de livros para jovens adultos, abandonou-a depois de ela ter insultado um leitor que deixou uma crítica de quatro estrelas na sua página do Goodreads.
Stusek afirmou que os seus comentários eram uma piada, mas foram mal interpretados, "o que levou a uma retaliação no Goodreads".
"Eu e a minha editora estávamos a ter problemas há algum tempo e, quando me pediram para lhes apresentar um pedido de desculpas público, achei que era melhor seguirmos caminhos diferentes", disse a autora por e-mail.
"Por uma série de razões, incluindo mas não se limitando a atacar um leitor online, decidimos separar-nos de um dos nossos autores", escreveu no Twitter a sua editora, Brooke Warner da SparkPress, na altura.
O Goodreads tem moderadores; os cargos oficiais são "especialistas do Goodreads", de acordo com o LinkedIn e as listas públicas de emprego. Os moderadores devem remover as mensagens que violam as regras do Goodreads — por exemplo, críticas que atacam um autor, mas que não são realmente sobre o seu livro. Mas a moderação é manual e a fila de espera para as críticas sinalizadas é longa.
Suzanne Skyvara, porta-voz do Goodreads, disse que a empresa "leva muito a sério a responsabilidade de manter a autenticidade e a integridade das classificações e de proteger a nossa comunidade de leitores e autores".
"Ouvimos o feedback dos leitores, autores e editores e investimos em ferramentas e equipas de apoio para melhorar a nossa capacidade de detectar rapidamente e de nos mantermos à frente de conteúdos e contas que violam as nossas críticas ou as directrizes da comunidade", afirmou Skyvara num comunicado enviado por e-mail.
Mas os autores que se sentem inseguros e tratados de forma injusta recorrem frequentemente a outras redes sociais, como o Twitter, para chamar a atenção da empresa.
"O Goodreads precisa mesmo de um mecanismo para acabar com os ataques de ‘uma estrela’ aos escritores", escreveu no Twitter a autora Roxane Gay depois de Gilbert ter anunciado o cancelamento do seu livro. "Isso mina a pouca credibilidade que lhes resta."
Friedman, o consultor editorial, diz que qualquer editora decente apresentará um plano de marketing que envolve duas a três fases de revisões avançadas no Goodreads para gerar burburinho sobre o livro.
"Penso que é uma ferramenta poderosa para as editoras", afirma. "Mas é uma verdadeira faca de dois gumes quando é usada como uma arma."
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post
O fundador da Amazon, Jeff Bezos, é proprietário do The Washington Post. A directora-geral interina Patty Stonesifer faz parte do conselho de administração da Amazon.