António Mota põe um caracol a aventurar-se pelo mundo
Abandonado pelos irmãos, cansados da sua extrema lentidão, um caracol consegue superar-se. Representa-nos a todos.
António Mota queria escrever uma história diferente, “que não demorasse muito tempo a ser lida ou ‘contalida’”, explica ao PÚBLICO, acrescentando: “Uma história que, daqui a alguns anos, a minha neta Lia talvez gostasse de ler.” No entanto, “a história não aparecia”, recorda.
“Andei a cismar alguns meses. Até que, não sei explicar como aconteceu, apareceu no ecrã um caracol minúsculo, enfezado e sem nome”, diz o escritor, que já leva mais de 40 anos de vida literária e recebeu vários prémios. Destaque para o Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens, em 2004, com Se Eu Fosse Muito Magrinho, ilustrado por André Letria, e as duas nomeações para o prémio ALMA (Astrid Lindgren Memorial Award), em 2014 e 2015, por ser “um dos mais prolíficos escritores para a infância e juventude” e por a sua obra ter “a singular qualidade de ser ao mesmo tempo intemporal e universal”.
Chegado ao caracol, “depois foi fácil”, diz o autor, natural de Baião e professor do ensino básico logo aos 18 anos: “Segui esse caracol e a história foi escrita.” E pôs-se a pensar: “Afinal, quem é que nunca se sentiu pequenino-pequenino? Quem é que nunca se sentiu ultrapassado? Quem é que nunca pensou em desistir? Quem nunca sonhou com uma bela vida?”
Acabaria por concluir: “Esse caracol sou eu e somos todos nós, grandes e pequenos.”
A história conta a vicissitude de um caracol abandonado pelos irmãos e que desistiu de caminhar, de prosseguir com a sua vida. “Enfiou-se na sua concha muito frágil e resolveu que nunca mais havia de lá sair. Nem mesmo para comer.”
Mas um grupo de formigas haveria de o convencer a fazer-se de novo ao caminho. “O mundo é grande, anda conhecê-lo”, disseram-lhe. “Há tanta coisa para fazer”, repetiram, uma e outra vez. E ele lá se aventurou, sabendo que teria de encontrar e comer sete trevos de sete folhas para se transformar “num belo e grandioso caracol”.
No seu pensamento, imperava a frase: “O mundo é grande e eu vou descobri-lo!”
Brincar com as dimensões
Esta história “convenceu” de imediato o ilustrador Ricardo Ladeira, que recorda ao PÚBLICO: “O que me fez apaixonar por ela foi quando o António me disse de forma muito carinhosa: ‘Oh Ricardo, tu és o caracol... nós somos todos o caracol’, e foi aí que mergulhei de cabeça e senti o quão especial e importante é esta história.”
O ilustrador lembra também a abordagem ao escritor na Feira do Livro de Lisboa de 2022: “Disse-lhe de imediato, sem vergonha alguma: ‘Quando quiser, ligue-me e eu paro tudo o que estiver a fazer para ilustrar um livro seu.’ Passado um ano, temos um livro juntos e já o trato por tu.”
O que cativou Ricardo Ladeira neste trabalho “foi o facto de poder brincar com as dimensões, de criar um contraste de tamanho entre o caracol e o ambiente”. Para ele, “o bosque é uma das personagens da história e foi um desafio criá-lo, porque existe de várias maneiras durante a viagem e apresenta-se sempre como um desafio”.
Usou, para a sua narrativa visual, “técnica mista de desenho, com caneta de pincel preta sobre papel e papel vegetal, com posterior sobreposição de imagens e pintura digital”. Pormenoriza ao PÚBLICO via email: “Cada cor corresponde a um desenho por folha, a linha principal, as sombras, o brilho, o preenchimento e outros elementos, tudo sobreposto cria o desenho final, como um género de serigrafia digital.”
Para finalizar, diz ainda sobre o empenho na representação: “Preocupei-me muito em tentar transmitir uma sensação de fragilidade, das dificuldades que um caminho destes pode significar, que se vai transformando em superação e conquista. Somos todos este pequeno caracol.”
Certamente que Lia irá gostar de ler e ver este livro do avô. De-va-ga-ri-nho, como o caracol sem nome.