Na Guarda há sardinhas pelo São João, mas primeiro vem o caldo de grão
Não se trata apenas de guardar de uma receita saborosa, mas de preservar uma leguminosa que deveria criar riqueza nas famílias de pequenos agricultores das Beiras.
Estávamos à conversa com Rodolfo Queirós, presidente da Comissão Vitivinícola Regional da Beira Interior, quando nos ocorreu perguntar por algum ingrediente/prato típico da Guarda nesta altura e que não fosse obviamente a morcela. A pergunta ia a meio quando resposta já estava em marcha: “Isso calha bem porque um dos pratos mais procurados por estes dias é o caldo de grão.” Mas... como? Algum caldo ligeiro com grão-de-bico a boiar? “Nada disso. É mesmo caldo substancial, quase a fazer lembrar uma sopa da pedra.”
A nossa ideia era que os únicos doidos que comiam leguminosas estufadas no Verão seriam os de Mirandela (às quintas-feiras todos os restaurantes servem rancho) e os de Almeirim e arredores na variante sopa da pedra, mas, pelos vistos, não.
Na Guarda, na noite de São João come-se caldo de grão-de-bico e, a seguir, sardinhas grelhadas. Marquem os termómetros 30, 35 ou 40 graus que o caldo de grão não pode faltar. O caso é tão sério que a Câmara Municipal da Guarda promove festarolas de caldo de grão pelos bairros da cidade, com cada um a puxar pela criatividade para retocar o caldo, visto que não existe uma receita canónica. Aliás, nem receita nem um texto que, com rigor, justifique a origem do prato e a sua relação com o santo.
Em consultas com Olga Cavaleiro ficamos de aprofundar o assunto em breve. Quer dizer, a investigadora começou logo a dissertar sobre questões religiosas e certos comeres de Celorico da Beira e Almeida como elementos de aproximação ao caldo de grão, mas, como não é mulher de mandar palpites, prometeu-nos que ia estudar. Um caso raro nestes domínios.
Ora, se há quem associe este prato ao histórico restaurante A Tasquinha, junto à Câmara Municipal da Guarda, a nós calhou-nos ouvir histórias de António Maximino Gonçalves e Teresa Gonçalves, os proprietários do restaurante Colmeia, na Guarda, onde servem caldo de grão há décadas, com tanto sucesso que há clientes que encomendam panelas de caldo para ser comido em casa com amigos e familiares ao longo de todo o ano e não apenas na época do São João. Diz-nos o Max (assim é conhecido na Guarda) que, “antigamente, o caldo de grão era comido com as enguias da Murtosa que viajavam de comboio em barricas”. “Primeiro comia-se o caldo, e, depois, seguiam-se umas espetadas de enguias. Como as enguias ficaram escassas e caras, foram substituídas pelas sardinhas, mais abundantes.”
Certo, mas, ainda assim, por que razão alguém se lembrou de servir um prato pesado (típico de quem vai trabalhar a terra) como entrada e, a seguir, as sardinhas com pimentos assados e broa? Ninguém sabe. Esta semana, alguém, numa conversa à mesa no Colmeia, avançou uma hipótese: o preço da sardinha noutros tempos. Como se sabe, uma sardinha era peixe que tinha de render para várias bocas (não é como hoje). Donde, possivelmente comia-se o caldo barato que enchia e reconfortava e só depois as sardinhas (ou as enguias), em modo de conduto fino. Nisto das comidas, já se sabe, a cada barriga a sua sentença.
O caldo e o Colmeia
Aqui no Colmeia o caldo é feito de forma simples. Salgam-se carnes de porco e de vaca (partes ditas pouco nobres, como chispes, orelheiras ou um chambão), que serão depois cozidas em água. Calhando haver um osso de presunto, tanto melhor. Retiram-se e desfiam-se as carnes. Faz-se um refogado à moda tradicional. Junta-se o grão já cozido, as carnes desfiadas e a água da cozedura destas e do grão. Na versão Colmeia, durante o processo é preciso reduzir a puré uma parte do grão, para que o caldo nos entre na boca com uma textura deliciosamente aveludada.
Este caldo é, para os maluquinhos por grão-de-bico, uma perdição. Tem o sabor forte da leguminosa, mas suavizado pela gordura das carnes, sem que – detalhe importante – apareçam por aqui notas impositivas e agressivas de fumeiro. Na hora de servir, uma folha de hortelã, que, libertando bons aromas, nos atira mais para o Alentejo do que para a Beira. Mas, lá que fica bem, fica. Com um vinho branco da Beira Interior que tenha dois ou três anos de vida, melhor ainda. Um tinto Rufete que respeite bem a casta também não fica mal, não senhor.
Agora, detalhe muito importante, mais do que a origem das carnes, a qualidade do grão-de-bico importa. E, no caso do Colmeia, o grão tem de ser obrigatoriamente produzido na região. “Nós, que já temos a receita há décadas, sabemos que uma coisa é fazê-la com grão importado e outra é fazê-la com grão daqui. Não me interessam tanto as variedades, mas interessa-me o território onde é produzido”, diz-nos Max.
Vai daí o dono do Colmeia tem um contrato curioso com os responsáveis da antiga loja Fernando Tracana (hoje Egicampo), na Guarda. O espaço fornece aos agricultores locais sementes de variedades tradicionais de leguminosas em geral, com a contrapartida de lhe venderem parte da produção, que será disponibilizada ao público. E Max, que é de olho fino, tem o privilégio de comprar grãos que o dono da loja considera serem de alta qualidade (“pago mais mas não me importo e acho que tem de ser assim”).
Portanto, ir agora ao São João da Guarda, que dura vários dias, para comer caldo de grão (vá, a morcela e os vinhos da Beira Interior também) é um exercício de bom gosto, de promoção da biodiversidade, de valorização da agricultura local e de promoção da economia circular. Comer caldo de grão é guardar sabores e guardar a nossa história.
O único cuidado a ter no Colmeia é pedir meio prato de caldo de grão. Porque, depois, aparecem uns filetes de polvo que homenageiam a família Aleixo (Porto), bacalhaus ou carnes diversas. E, ou temos uma cama ao lado do restaurante, ou temos de fazer um trilho até Marialva em passo acelerado.