Museu é tudo e vivo
O Festival Islâmico dá-lhe milhares de visitantes e até há agora um Hammam e Casa de Chá pronto a estrear. Porque o estatuto de vila museu vivo não é em vão. É verdade que a referência é aos estratos de história sobrepostos e descobertos, mas cá por nós é também vila museu da essência alentejana: talvez pelo sentido hospitaleiro, o sorriso com gosto de quem oferece para provar umas migas ou um doce tenham contribuído tanto para Mértola ser território de paz por séculos entre religiões (com intervalos…) - e entreposto comercial, epicentro dos mundos romano, islâmico ou cristão - como o facto de estar ali o Guadiana. O grande museu mertolense é muitos: Museu de Mértola - Cláudio Torres, assim baptizado em homenagem a quem desenvolveu o trabalho, com o museu como chapéu dos núcleos museológicos (14, a maioria na vila, outros em localidades vizinhas) que se vão descobrindo enquanto se serpenteia pelas ruas de casinhas brancas e se pisca o olho às belas paisagens do rio.
“Em Mértola dá-se um pontapé, ou salta pedra ou salta moeda” é um ditado que um dos nossos guias, João Rolha, do Núcleo de Apoio à Economia Local e Turismo muito gosta. Não faltam nem umas nem outras estes museus; daí que não seja de admirar que com mais um dois pontapés saltem mais museus. E assim se vão cruzando os milénios pelas ruas-museus; aliás, daí não se admire se da terra se erguerem mais museus. Veja-se, passando o castelo, a altaneira Igreja Matriz: de templo romano fez-se mesquita, daí igreja cristã; os sinais permanecem e é única no país, com as suas portas árabes e mirabe (sentido Meca). Monumento nacional, tem outro monumento nacional como vizinha. Ali, na encosta norte do castelo, sobre o que seria o fórum romano, levantou-se um bairro islâmico, depois um cemitério duradoiro, que permitiu preservar as camadas da história e onde nos finais dos anos de 1970 tudo começou: a Alcáçova, onde se avista a Casa Islâmica, é agora campo aberto arqueológico visitável, incluindo a celebre galeria subterrânea, o criptopórtico. Mas é escolher a época ou temática e há mais para visitar: a Basílica Paleocristã, o núcleo de arte islâmica, a Casa Romana, entre outros.
A rede do museu inclui mais tempos e temáticas, como a Casa de Mértola (que preserva uma casa típica dos anos 1940/50) ou a Casa do Mineiro (idem, aqui nas Minas de São Domingos), e ofícios, como a Forja do Ferreiro ou a, bem viva, Oficina de Tecelagem, repleta de mantas e cobertores ou tapetes tradicionais, que se aqui fazem e vendem. Entre ver o tear em acção e as suas tecedeiras, pode encontrar a dona Fátima, 68 anos, que há apenas dez anos decidiu finalmente aprender esta arte e agora é uma das artistas que a mantém viva. “As mantas de lã são as mais desejadas, e as há desde 750 euros”, ficamos a saber. “Mas as de retalhos são 250”, sorri, a ver se convence o freguês. Por ali está também Bruno Mareco, que assiste na fiação. Aos 21 anos, é a garantia de continuidade desta arte e não só: “Estou a aprender para ser mestre de moinhos de vento”, surpreende-nos. Teremos de voltar para ver o Bruno no campo, no “seu” moinho, que, garante “está todo a trabalhar na perfeição e faz moagem”. www.museudemertola.pt
A riqueza do Guadiana e a biodiversidade
“Quando era pequeno estava sempre a fugir para o rio”, diz-nos Chico do Vendaval (ou Francisco Guerreiro no BI). Desde os 12 anos que tem barco, mas agora, aos 68 anos, apostamos que continua a fugir para o rio todo o dia. É ele que comanda o nosso barco, que vai deslizando calminho pelo Guadiana que circunda Mértola. E é uma beleza vê-la altaneira e ir apreciando as margens, os miúdos que aproveitam o cais em saltos para a água, famílias a fazer do rio praia, os pescadores entrados na água à pesca de achigã, saboga. “Lampreia, antes havia com fartura, agora já não há. Nem sável”. Por agora, só vemos é a passarada, tartarugas a descansar nas rochas, muitos patos.
Pelas margens e mais além não falta biodiversidade, ou não tivéssemos o Parque Natural Vale do Guadiana. “Já temos um clima semiárido, mas temos uma biodiversidade extraordinária”, dir-nos-ia antes Rosinda Pimenta, vice-presidente da câmara. A figura mais chamativa: o lince ibérico, aqui introduzido e que já se tornou ícone, sempre atrás dos coelhos que pululam por estas terras (e uma galinha ou outra...). A constelação de aves (da também icónica cegonha às águias) também tem levado ao aumento do turismo do birdwatching e não faltam trilhos pedestres para percorrer o concelho e o parque.
Pelas águas, além de cruzeiros (entre eles Mértola-Pomarão em umas 2/3h, ou mais além, até à algarvia Alcoutim), não faltam actividades, com a Estação Náutica em desenvolvimento acelerado, e via o clube náutico local e empresas turísticas: da canoagem aos caiaques, é escolher. Uma coisa é certa: ver a vila do rio é obrigatório, porque é daqui, como nos diz o especialista local João Rolha, que “o postal de Mértola se oferece todo”.
Esta mina é uma mina
Paisagens tão desoladoras que parecem de ficção científica. Vamos à lua, vamos a Marte, vamos aos infernos, tudo em cenários tão espantosos que isto ainda vai dar muitos filmes. Lembrando esta terra de mineiros, por entre ruínas, como monumentos apocalípticos no meio de desertos, águas ácidas, terra vermelha, o complexo das Minas de São Domingos é património protegido e terreno de visitas. Agora já se vêem algumas árvores e plantas, mas houve um tempo em que apenas um arbusto que adora a actividade mineira se avistava, a Erica Andevalensis, cujas cores terra casam bem com a terra vermelha, aponta-nos a nossa guia, Sara Ribeiro, que não sendo do concelho (é de Serpa), cresceu visitando aqui os avós, donos de uma taberna de que os mineiros eram bom clientes. Está ligada à Fundação Serrão Martins (nome do primeiro autarca eleito em Mértola pós-Revolução), que gere visitas e história, constituída pela autarquia e pela empresa La Sabina, actual proprietária efectiva dos terrenos.
Sara conduz-nos por este gigantesco complexo, com mais de um século de extracção de minérios (a riqueza da faixa piritosa ibérica), que deu vida, até fechar em 1966, a uma vila de bairros operários com milhares de trabalhadores. “Tinha mais gente que Beja”, assinala a nossa guia. Uma Casa do Mineiro, exígua em uns 16m2, mostra como viviam os trabalhadores, entre cama, lareira, objectos do dia a dia. Bem diferente do rico “bairro dos ingleses”, que dirigiam a mina, e que incluía jardim, agora bem cuidado, com coreto e logo ali o palácio do director (o Palácio dos Ingleses, hoje o charmoso hotel São Domingos, que inclui observatório de estrelas); além do “cemitério dos ingleses”, o cineteatro e, claro, campo de futebol (“Gostavam muito da bola”, obviamente, e terão aqui nascido uns cinco clubes).
Depois do adeus à mineração, a decadência das estruturas das minas e projectos para reaproveitá-las e limpar o prejuízo ambiental. Agora é passear pela corta da mina, ali abrir os olhos de espanto para a lagoa de águas ácidas (“que chegaram a ser usadas para banhos e mezinhas”, diz Sara) e sentir-lhe o odor e estranha atracção, avistar o malacate (que dá até nome a um projecto artístico local com muitos eventos), entrar pela casa do mineiro e, muito especialmente, abrir os olhos de espanto no cenário de filme que é a Achada do Gamo, território das fábricas de enxofre, onde ruínas parecem esperar um sopro para cair e para onde corre um ribeiro metálico.
Dica: uma Rota do Minério propõe passeios a pé ou de bicicleta por trilhos com cerca de 14km, da corta a Santana de Cambas. Para informações, visitas, Casa do Mineiro: Fundação Serrão Martins, 286 647 534 / 961 940 458 / fundacaoserraomartins.pt
Esta praia vale ouro
É irresistível, nasce graças à maior das duas albufeiras criadas em tempos das minas (a Tapada Grande), tem verdadeira areia de praia (para aqui trazida, claro), bar e serviços de apoio, anfiteatro ao ar livre, parque de merendas… E acima de tudo um desenho e vistas de postal. A praia fluvial da Mina de São Domingos (ou da Albufeira da Tapada Grande), a celebrar duas décadas, tem ainda os predicados de praia acessível (inclui cadeira anfíbia) ou Bandeira Azul e Praia com Qualidade de Ouro (pelas águas), inserida no Parque Natural do Guadiana. Em dia sabor Verão, um mergulho nas suas águas barrentas (“fresco-mornas”, diria alguém) soube às mil maravilhas. A dois passos de Mértola ou das minas, é de visita obrigatória. Na época alta tem vigilância (finais de Junho, inícios de Setembro).
Bem comer
Pode não ser impossível, é verdade, mas é capaz de ser difícil comer mal em Mértola. Há um orgulho alentejano de bem comer e bem beber, e isso é notório. A riqueza da tradição, com um twist aqui e ali, fazem milagres. Entre a utilização das ervas, dos poejos e orégãos, salsas e coentros, aos afamados queijos e enchidos, naturalmente do porco e do borrego, ao santo pão, azeite e azeitonas. E por aí fora.
“Quase tudo o que faço é alentejano. Grão, migas, sopas de tomate, sopa de cação, muita açorda, açorda de bacalhau, um gaspacho do Alentejo mas à minha moda, mas só a partir de Junho, que os tomates ainda não estão bons”. Quem fala assim, é cozinheira de mão cheia, no caso a dona Amélia Dâmaso, do Al-Andaluz, em Santana de Cambas, um dos porta-estandartes das mais de duas dezenas de restaurantes de Mértola. Do rio pode vir achigã e saboga, a lampreia (“mas já rareia”), do campo, tudo do porco e do borrego e companhia, javali e veado, das hortas à volta - “gosto muito das ervas daqui, do poejo”. Mas também vai até umas variações vegetarianas e pode entrar um cuscuz. “Aprendi tudo com a minha mãe, com a minha avó”, diz esta mestra local da cozinha alentejana.
Outra boa experiência pode ser saboreada no centro da vila de Mértola. No Restaurante Tamuje, duas décadas de história e que recentemente mudou para nova e maior localização, é Eduardo Romba que está à frente deste “restaurante familiar”. A ementa de tradição alentejana e local cumpre-se na perfeição; e o serviço também: preparam-se à nossa frente a açorda de bacalhau e as sopas de tomate, que chegam com os ingredientes divididos num carrinho. Temperos e sabor apurados, é garantido. Na ementa, além dos clássicos pode haver propostas especiais, dos tacos de borrego à moqueca de cação.
Al-Andaluz, R. Francisco Ribeiro Raposo, 7750-413 Santana de Cambas, t: 286 655 002
Restaurante Tamuje, Rua Dr. Serrão Martins nº 16 - Mértola, t: 286 611 115
Bem beber
Numa região que é uma meca dos vinhos, os de Mértola também se destacam e valem bem a pena a prova. Estas terras de calores extremos (40sºC, sempre a subir), clima semiárido, dão verdadeiras pomadas, hoje em dia para todos os gostos, até porque o território-vinhas também se espartilha por ribeirinho, sobe a 300m, faz-se de planície, é “vinha em solos mais empobrecidos”, “grande exposição solar”, uma “baga suculenta”, resume-nos Fernando Lampreia, distribuidor de vinhos locais (e com a loja winestoremlm) em noite de provas. E há opções, mesmo que a água seja pouca. “Temos 38 rótulos de seis produtores”, neste território histórico do vinho com "vestígios da produção romana, do consumo de vinho nos tempos árabes”.
Para os dias de hoje, eis seis opções variadas, no caso todas de tintos (a prova de brancos ficou para uma próxima visita). Da Herdade dos Lagos, que aposta na produção biológica “há muitos anos”, um forte vinho bio monocasta Touriga Nacional: ao contrário dos seguintes, um pouco abaixo ou acima dos 14, aqui o grau alcoólico é na ordem dos 15,5% - perigosos, que o sabor é leve, um veludozinho de frutos vermelhos e caramelo queimado, dir-se-ia (cacau e café, corrigem-me).
Do Monte Santo António, de Francisco D’Assis Costa, também assumidamente de agricultura biológica, o vinho que homenageia um Conde de Mértola, Friedrich von Schönberg. É um Frederick von S, tinto suave e leve (13,5), de 2017, um vinho harmonioso, que parece longe das guerras e das grandes histórias bélicas (francesas) do dito conde, e onde entram Aragonez, Touriga Nacional, Syrah, Alicante Bouschet e Trincadeira.
Para a Discórdia, chega o vinho homónimo, simples (e económico, andará abaixo dos 10 euros) mas eficaz. É da Herdade Vale d’Évora, um tinto com bom corpo, de 2019, a partir da Touriga Nacional, Alicante Bouschet, Touriga Franca e Syrah. Sabor a frutos e para sábios com cheirinho a esteva.
Da Herdade da Bombeira, junto ao Guadiana, um tinto 2020, em que Trincadeira, Syrah e Alicante se juntam à Cabernet Sauvignon. Redondinho, enche bem a boca, a pedir boas carnes, bons queijos. Ainda da mesma herdade, o monocasta Syrah apura essas mesmas características, como um tostadinho a evidenciar-se e um sabor suave e persistente.
De outro destacado produtor local, os Vinhos Balanches, com um Tinto 2020 (Tourigas franca e nacional, Syrah), de bom corpo e toquezinho de especiarias, ideal para acompanhar o receituário alentejano; e, por fim, uma garrafa especial, que acabou por tornar-se a nossa preferida para o resto da noite: o Balanches Reserva 2019 (T. Franca, Syrah, Alicante B.), um sr. vinho de corpo cheio, sedutor e guloso, que pede conversa pela noite fora.
Dê tempo ao tempo
Aproveite o tempo e os dias de vagar (durante o festival e grandes eventos é mais complicado, claro), sente-se e converse, que há bons anfitriões por todo o lado e temos todos muito a aprender uns com os outros. Especialmente em Mértola. Se quiser passear e conversar com quem mais sabe da terra, faça um passeio com um dos guias locais: há uma bolsa de guias, cada um com as suas especialidades (natureza, trilhos, cultura, património, gastronomia).