Entrada no 1.º ciclo: tanta pressa para quê?

Quando comecei a lecionar, no 1.º ano estava prevista a abordagem dos números até 20, e no 2.º ano até 100, atualmente o currículo do 1.º ano contempla os números até 100, e no 2.º ano até 1000.

Foto
"Esta maior exigência, que se sente desde o 1.º ano, acentua-se no 3.º ano, que tem um currículo mais complexo e extenso" rui gaudencio/arquivo
Ouça este artigo
--:--
--:--

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Na altura de fazer as matrículas para o início da escolaridade, todos os anos há pais de alunos condicionais que se debatem com a questão de matricular os filhos no 1.º ano ou, pelo contrário, de adiar a matrícula por um ano, para que as crianças ingressem na escola básica com os seis anos feitos.

Importa esclarecer que, do ponto de vista legal, as crianças que têm idade legal para ingressar no 1.º ciclo são aquelas que perfazem os seis anos até 15 de setembro desse ano letivo. Aquelas que nasceram entre 16 de setembro e 31 de dezembro são consideradas condicionais, podendo matricular-se no 1.º ano se tal for requerido pelos pais, ficando a matrícula dependente da existência de vagas.

No entanto, esta decisão, tão importante para a escolaridade do aluno, não deve basear-se em questões legais relacionadas com a existência de vagas, implicando uma reflexão aprofundada por parte dos pais, já que é a estes que cabe desencadear este processo. Assim, antes de o fazerem, é fundamental ouvir a opinião do educador de infância e avaliar a maturidade da criança, para perceber até que ponto está preparada para os desafios do 1.º ano.

Mas claro que decisões com esta não podem ser tomadas em abstrato e sim tendo em conta a criança concreta, sendo certo que ninguém pode ter a certeza da forma como vai processar-se o desenvolvimento infantil. Porém, tirando os casos em que as crianças revelam uma maturidade e um interesse pela aprendizagem acima da média para a idade, penso que a maioria dos alunos condicionais tem mais a ganhar do que a perder em adiar a matrícula por um ano, de modo a ingressar na escolaridade com os seis anos feitos.

Se, ao longo da minha carreira, sempre tive esta opinião, nos últimos anos esta visão veio a reforçar-se, devido à complexificação dos currículos do 1.º ciclo, não só nas áreas curriculares estruturantes, como também no que se refere ao desenvolvimento de competências transversais de nível superior, essenciais para enfrentar um mundo em mudança.

Apenas para se ter uma ideia, quando comecei a lecionar, no programa do 1.º ano estava prevista a abordagem dos números até 20, e no 2.º ano até 100, enquanto atualmente o currículo do 1.º ano contempla os números até 100, e no 2.º ano até 1000. Quanto aos números fracionários, passaram a ser introduzidos no 2.º ano, sendo que no 3.º ano já está prevista a realização de operações com frações.

Tudo isto para dizer que a opção pelo ingresso de uma criança de cinco anos no 1.º ano tem de atender necessariamente às questões relacionadas com os currículos, que não são de somenos importância. Neste sentido, importa ter consciência de que houve conteúdos curriculares que foram antecipados para anos anteriores, o que naturalmente exige maior maturidade dos alunos a nível cognitivo.

Esta maior exigência, que se sente desde o 1.º ano, acentua-se no 3.º ano, que tem um currículo mais complexo e extenso. Assim, crianças mais novas que até podem conseguir ter sucesso no início da escolaridade, podem começar a enfrentar dificuldades no 3.º ano ou, pelo menos, a sentir-se em esforço, percecionando a aprendizagem como algo de penoso.

E não são apenas os currículos do Português ou da Matemática. Atualmente, é suposto que a escola desenvolva nos seus alunos competências de nível superior, como a capacidade de pesquisar e selecionar informação, o pensamento crítico e criativo, o desenvolvimento pessoal e a autonomia, a consciência cívica e o relacionamento interpessoal, a adaptabilidade e a inovação.

Todas estas questões não só exigem maturidade cognitiva, emocional e social por parte da criança, como conduzem a uma densificação curricular que pressupõe o desenvolvimento de um maior ritmo de trabalho. Para as crianças mais novas, que ainda necessitam de brincar e apresentam falta de foco na aprendizagem, estas exigências podem revelar-se excessivas, levando a uma falta de interesse pelas tarefas escolares.

Chegados a este ponto, é fundamental parar para pensar. É que a questão que está por detrás desta pressa dos pais em matricular os filhos no 1.º ciclo prende-se com a ideia de que, se o fizerem, as crianças ficarão mais adiantadas; caso contrário, estarão a marcar passo e a perder tempo. Esta ideia baseia-se no pressuposto de que a estimulação precoce vai contribuir para a intensificação da aprendizagem, o que não tem necessariamente de ser verdade.

A criança tem de estar madura para poder processar e apropriar-se do conhecimento e, para tal, é necessário tempo. Quando estamos a dar-lhe esse tempo, podemos estar a ganhar tempo: tempo para viver a infância; tempo para amadurecer; tempo para desejar aprender; tempo para compreender que a aprendizagem pressupõe não fazermos sempre aquilo que nos apetece, mas sim aquilo que, depois de refletirmos, nos parece ser o melhor. Em suma, temos de ousar ter a coragem de perder tempo. Pois só assim poderemos ganhar tempo na verdadeira aceção da palavra.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários