As mulheres das classes populares como autoras de um mundo melhor

A forma como representamos as classes populares e o modo de estar e de ser das mulheres tem sido contada e recontada de acordo com as lentes do masculino e da meritocracia.

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Megafone P3: As mulheres das classes populares ADRIANO MIRANDA

Nestes últimos dias terminei a minha leitura do livro Elas: Percursos “inesperados” de jovens mulheres das classes populares, de João Teixeira Lopes (Tinta da China, 2023). Trata-se de uma investigação sociológica arrojada e esclarecida em que são aprofundados os casos de seis estudantes do mestrado em Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto: Madalena, Elisa, Marta, Cristina, Filipa e Maria (nomes fictícios).

Espelha as suas relações com várias dimensões das suas vidas – práticas culturais, condições económicas, ligações à religião e à política, expressões da sexualidade – sempre enquadradas pela dualidade da estrutura, em que macro e microrrealidades atuam na orientação dos percursos educacionais.

A feminização do mercado de trabalho e, antes dele, do ensino superior tem permitido vivenciar a positiva influência que outras opiniões e modos de estar, neste caso das várias mulheres que por estas instituições passam, trazem à (até há pouco tempo) monotonia da reprodução machista.

No entanto, a vontade ou a necessidade de evidenciar as vozes daqueles/as que sempre foram ofuscados através das lógicas desigualitárias revela amiúde a tendência de homogeneizar (a categorização d)as experiências e (d)os testemunhos que os indivíduos produzem sobre as mesmas. Nesta obra, contudo, assistimos ao alerta acerca da diferenciação que existe entre aqueles que, pertencendo ao grande grupo das classes populares, pensam-nas, vivem-nas e refletem-nas de modos singulares.

Ainda assim, não nos podemos esquecer que a sociologia “está mais habituada a lidar com as razões do provável” (Lopes, 2023, p. 13). Tal dever-se-á ao trabalho que por ela sempre foi empreendido nas descobertas das causas de problemas persistentes como a pobreza ou o analfabetismo. Por isso, estas seis jovens manifestam elementos que a todas são comuns e que a todas afetam na hora de tomar decisões relevantes para os seus itinerários.

Sabemos que as mulheres estão mais expostas às iniquidades económicas devido ao seu afastamento histórico de lugares de produção e de consumo relevantes e à obrigação imposta do cuidado com as lides domésticas. Isso torna-se óbvio quando detetamos em todas as raparigas entrevistadas a frugalidade do consumo ou o temperamento das expectativas relativamente ao futuro laboral.

A forma como representamos as classes populares e o modo de estar e de ser das mulheres que nelas se encontram tem sido contada e recontada de acordo com as lentes do masculino e da meritocracia, que têm sido, também, aliadas da perpetuação da sociedade patriarcal.

Quantos casos não conhecemos de adolescentes e adultos que, vindos da famigerada miséria, à boa e velha maneira do self-made man (lá está, “man”), conquistam lugares de topo nas várias áreas de talento? Por isso, quando abordamos a mobilidade social do outro género, apresentamos o enviesamento de colocar todas as feminilidades no vaso da mesmidade considerando que todas darão igual flor de sucesso.

Mas as mulheres deste livro são gente diferente e, ao mesmo tempo, comum, cada qual revelando as suas incertezas, contradições e ambiguidades. São raparigas que vão ao futebol, mas não pretendem aderir à moda dos engates amorosos múltiplos, preferindo, pois, um namoro estável; que celebram ritos religiosos criticando vários dos preceitos da Igreja, comportamento consonante com as visões mais progressistas da sociedade; que, sem se mobilizarem de forma consistente em termos políticos, obtêm resultados académicos exemplares num curso de ciências sociais. Todas elas, na sua diversidade de agência em comunicação com a globalidade da estrutura, são um mundo em constante heterorreconhecimento e autodescoberta.

Não poderia passar em branco, também, que as "estórias" contadas no livro são apenas uma versão da narrativa explicitada. Com analepses, elipses e prolepses, assim como qualquer evento que todos nós relatamos diariamente. E essa é, de resto, mais uma prova da mundanidade dos acontecimentos que dão cor, imagem e som à existência destas jovens mulheres, sem que a mesma, porém, caia na banalidade.

O sociólogo necessita de estar atento a estas formas de contar, que são também, nas palavras de Teixeira Lopes, formas de viver. Maneiras, no fundo, de pluralizar os fenómenos que perpassam e atravessam o feminino e o popular.

Pierre Bourdieu, um dos mais insignes sociólogos do séc. XX, cometeu, todavia, o erro de hierarquizar os gostos das classes sociais, distinguindo o “bom gosto” das classes dominantes do “gosto da necessidade” das classes populares. Ora, se há prova de que com essa necessidade se consegue fazer desejo e ambição são estas seis estudantes do Elas.

Longe de fugirem do sistema capitalista que as remete para seleções que têm de concretizar, baseadas nos parcos recursos, é também neste sistema que identificam e denunciam aspetos de desigualdade e não se retraem de se individualizar através de um consumo cultural de uma estética particular.

É no jogo da dominação e da autonomia que nos reconhecemos, desde sempre, como pessoas. Dele não podemos escapar, mas podemos reconfigurá-lo, modificá-lo. A ascensão das mulheres ao domínio do ensino e do trabalho e os estudos efetuados acerca dos grupos mais pobres numa perspetiva da sua dinâmica, ao invés de passividade, permite-nos ter esperança de que as discriminações serão cada vez mais esbatidas ao longo do tempo.

Até lá, saibamos olhar para o exemplo destas jovens como mais um de sucesso da mudança social, através da qual elas deixam o desconhecido para se tornarem corpo e voz valorizados.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico​

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