Ainda hoje temos dificuldades. Prometemos cooperar, e até mesmo colaborar, através das instituições nacionais e internacionais, para o alcançar, trabalho esse que tem sido árduo, repleto de emoções e desafiante. Contudo, pese embora alguns retrocessos que as derivas mais extremistas da política proporcionam, nos estados democráticos estas continuam a ser travadas pela consciência da maioria das pessoas que aspira por um mundo de igualdade entre seres humanos. De que falo propriamente? Bem, da ousadia do respeito.
Todos nós já passámos por alguma situação de desigualdade. Era deste tema de que falava numa das sessões de formação de um módulo de Sociologia que estou a ministrar com os meus formandos. Seja ela económica, de género, etária, sexual ou ambiental, entre tantas outras, cada pessoa já vivenciou as causas, os meandros e as sequelas do que é sofrer de discriminação. A desigualdade ou a discriminação têm este carácter ecuménico de conseguirem infiltrar-se em qualquer sistema social e alcançar toda a vida individual ou grupal. Por isso mesmo, o combate a tais injustiças somente pode ser alcançado em pleno de uma forma: através de uma mobilização colectiva.
Para isso mesmo, a Organização das Nações Unidas (ONU) decidiu instaurar o Dia da Discriminação Zero, celebrado a 1 de Março. Ele permite relembrarmo-nos que os direitos à inclusão e à dignidade são garantias que não temos de provar a ninguém, ao contrário de uma aleatória entrevista de emprego que já fizemos e se encontra perdida no tempo. A discriminação é, em sentido inverso, omnipresente, está sempre aqui para nos fazer reflectir sobre os atentados que já cometemos contra outrem em nome de um infundado conservadorismo. Se as desigualdades possibilitam alguma coisa de positivo é a crença na mudança como consequência de uma transformação pessoal e cultural. Caso contrário, as ordens rígidas que compactuavam com a arbitrariedade da monarquia não se tinham transformado num ethos republicano capaz de separar os poderes e de repor paridade quando as situações assim o exigem.
Lembremo-nos das vozes daqueles que pugnam todos os dias pela democratização das nossas vidas. Professores e formadores, médicos, jornalistas, assistentes sociais, actores, militares. A profissionalização das actividades é a nossa forma de organização como resposta à desordem do mundo – de um mundo selvagem, cruel, chefiado pela lei da sobrevivência ou da maior força. A institucionalização das nossas práticas é a humanização das nossas mentes e corações, pois é com o seu recurso que fazemos frente à violência como método de comando e de uso do poder. A corrupção das nossas instituições transgride o nosso esforço e remete-nos novamente para os lugares da exclusão e da brutalidade.
Temos, então, de ser mais políticos. Muitas vezes nos esquecemos, na correria do dia-a-dia, de prestar atenção aos mecanismos de distinção e segregação. Noutras até os reconhecemos, porém assalta-nos o medo de falar e de agir. E é essa resignação que dá espaço à proliferação da intolerância. Todavia, estas datas, como a que é comemorada no primeiro dia deste mês, merecem ser anunciadas, divulgadas, efectivadas. Com textos, conferências, marchas, devem ser assinaladas para que nos elucidemos a nós mesmos e nos capacitemos a levar a humanidade a um melhor rumo.
Como o nosso grande poeta Miguel Torga chegou a escrever: “Mas a vida é uma coisa imensa, que não cabe numa teoria, num poema, num dogma, nem mesmo no desespero inteiro dum homem”. A tendência para a nulidade da discriminação é tanto maior quanto mais elevado for o nosso conhecimento acerca de quem somos e de quais as ferramentas que podemos utilizar para fomentar o bem-estar. Sim, ainda hoje temos dificuldades em atingir o respeito absoluto – mas caminhamos para que, um dia, contemporizemos com o sonho que Martin Luther King Jr. reclamava com toda a legitimidade e inteligência.