Abusos sexuais e inviolabilidade do segredo da confissão
A Comissão Independente recomenda à Igreja Católica Portuguesa que reveja a imposição de sigilo de confissão no caso de crimes sexuais contra crianças por membros da Igreja. Deve o Estado intervir?
1. Recentemente, a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa veio recomendar a esta última que revisse "a imposição de sigilo de confissão em matéria de crimes sexuais contra crianças por membros da Igreja Católica". É uma tendência que podemos observar igualmente noutros países, como a França ou a Austrália, na sequência dos trabalhos de comissões análogas. Apesar de a recomendação se dirigir à Igreja e não ao Estado, cumpre perguntar: deve o Estado, no que de si dependa, procurar satisfazê-la?
2. A liberdade religiosa é um direito humano fundamental. Visa, no seu cerne, garantir a liberdade de cada pessoa encontrar por si própria uma resposta para a pergunta de Deus e do sentido último da vida. E de a viver em conformidade, pois não se trata de uma mera e redutora liberdade de especulação intelectual, que não constitui sequer a sua dimensão mais importante. À imagem de outros direitos fundamentais, assenta numa concepção da experiência e liberdade humanas que não se esgotam numa vivência do indivíduo virado sobre si próprio e isolado dos outros. Assim, se uns concebem e vivem a sua religião ou irreligião apenas como uma questão privada e de consciência, outros não dispensam a sua dimensão comunitária. Optando por pertencer a uma comunidade de crentes e adoptando certos rituais.
3. A prática da confissão e reconciliação é, para a Igreja Católica Romana, um sacramento. Envolve, à sua melhor luz, um exame de consciência da parte do crente, com vista a que se arrependa dos seus pecados e os expie (ambos se encontram ligados, se o arrependimento não é vã prosápia), para, a final, estar em condições de ser deles absolvido.
Para quê o padre, perguntarão alguns, ou até muitos. Não pode cada um haver-se directamente com o seu criador, sem intermediários? Não importa. Para uma determinada maneira de viver o catolicismo e para um certo número de crentes, a instituição da confissão é assim, com um padre. Faz parte do núcleo irredutível de crenças e práticas religiosas que as pessoas têm direito a manter e que seria uma violência arbitrária do Estado afectar, sem as razões mais ponderosas. Sendo evidente, de todo o modo, que, do ponto de vista psicológico, não pode ser considerado equivalente uma pessoa falar para si própria, em circuito fechado, ou falar livremente com outra pessoa, expondo-lhe as suas fragilidades, e, em troca, obtendo – para quem nisso acredite – auxílio na prossecução do caminho do crescimento espiritual, da purificação interior, da redenção dos pecados.
Nada disto poderá acontecer se o crente não puder confiar absolutamente no sigilo do padre a quem confessa o pior de si. Não há confissão sem segredo absoluto.
4. Que os abusos sexuais de menores são um crime hediondo, toda a gente de bem concorda e não é proposição que careça de discussão. Não se vê, porém, o que se ganha na luta contra esse flagelo fragilizando a instituição da confissão, tal como a Igreja Católica a entende. Pelo contrário, muito se perde, e isto mesmo que nos cinjamos a uma pura lógica instrumental, de eficácia.
A partir do momento em que o segredo se torna violável, todos os crentes deixam de ter confiança na instituição. Logo, deixarão de se confessar, ou, pelo menos, de o fazer abertamente. Deixando de lado sobretudo os pecados que mais carecem de ser confessados. Que se obtém com isto? Denúncias, poucas ou nenhumas, pois só se confessarão ou aqueles que já se entregariam, em qualquer caso, às autoridades, ou aqueles que, por ignorância e ingenuidade, confiaram no sigilo da confissão. Desaparecendo o único espaço em que era garantido à pessoa falar em liberdade plena. Um espaço em que poderia vir a ser instada a arrepender-se e até a entregar-se às autoridades.
Em vez de aumentarem as possibilidades de se arrepender e de abandonar a prática daqueles terríveis crimes, diminuem. Porque agora está a sós consigo mesma, fechada sobre aquela mesma consciência que se rebaixou ao ponto de a levar a cometer os abusos ou outros crimes. É essa pessoa que é suposto ter a capacidade de se arrepender sozinha e de se abster da perseverança no caminho do mal, sem ajuda?
5. Sucede também, tragicamente, que as próprias vítimas relatem os abusos em confissão. Afinal, um dos efeitos mais devastadores deste crime é que, muitas vezes, as vítimas se sentem culpadas e impuras, como se tivessem elas próprias pecado. Mas é fundamental garantir a essas pessoas, tantas vezes dilaceradas por um sentimento insuportável de vergonha, que possam expor as suas angústias com completa confiança no sigilo do seu relato. A denúncia obrigatória constituiria uma traição à sua confiança, e, mais uma vez, teria como efeito que deixariam de se confessar.
6. Quanto às denúncias a terceiros, por pessoas que não a vítima, o denunciador será também pecador (a confissão é para confessar pecados do próprio, não dos outros) – por ter sido conivente, por não ter procurado as autoridades, etc. – e, então, tem também de poder confiar no segredo da confissão, pelas razões acima expostas. Não o sendo – mas, então, cabe perguntar se e por que razão estamos ainda no âmbito da confissão –, queremos mesmo que a Igreja se converta num canal de transmissão de denúncias anónimas? Que pode trazer isso de bom?
7. Por fim, notam também alguns que já sucedeu a torpeza de os abusos serem cometidos por ocasião do acto da confissão, a seu coberto. Mas isso já nada tem que ver com o sigilo do que se diz na confissão, antes com a circunstância de nesse acto não se encontrarem mais pessoas presentes. As medidas aptas a prevenir esse perigo, caso se considerem justificadas, seriam outras, por exemplo a garantia de que o acto decorre à vista de outras pessoas, mas sem que estas tenham a possibilidade de escutar o diálogo (a Comissão debruça-se, aliás, sobre esta questão).
8. Nada fazer perante o horror dos crimes de abuso sexual de menores é uma indignidade. Mas o que se fizer, faça-se com a cabeça fria e com sentido. Só assim se fará justiça às vítimas.