Abusos sexuais na Igreja: vítimas ganham linha telefónica, mas não terão “via verde” no SNS

Grupo Vita, coordenado por Rute Agulhas, descarta “via verde” no SNS para vítimas de abusos na Igreja, por entender que seria “socialmente injusto”. As indemnizações ficam de fora do novo grupo.

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A psicóloga Rute Agulhas foi uma escolha directa do presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. José Ornelas Maria Abranches
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O Vita – Grupo de acompanhamento das situações de abuso sexual de crianças e adultos vulneráveis no contexto da Igreja Católica em Portugal, coordenado pela psicóloga Rute Agulhas, vai começar a atender vítimas e agressores a partir do dia 22 de Maio, pelo número de telemóvel 915 090 000 ou pelo e-mail geral@grupovita.pt. Descartada foi a sugestão de criação, dentro do SNS, de uma “via verde” para o atendimento prioritário das vítimas de abuso sexual em meio eclesial, que a coordenadora do Vita considerou que seria “injusto” face às restantes vítimas que aguardam meses por uma consulta.

De acordo com Rute Agulhas, que falou esta quarta-feira na conferência de apresentação do grupo, o atendimento telefónico decorrerá de segunda a sexta-feira, entre as 9h00 e as 18h00, e será garantido por um dos seis membros executivos do Grupo Vita, num trabalho que será feito em articulação com técnicos de saúde mental e até com o INEM, para os casos em que possa, por exemplo, haver risco de suicídio.

“Logo ao telefone, aplicaremos o protocolo de avaliação de risco e poderemos ter que articular naquele minuto com o INEM, se sentirmos que aquela pessoa está em perigo no que respeita à sua integridade física ou psicológica”, explicou a psicóloga, admitindo que, se o volume de chamadas o justificar, possa ser contratado um profissional da área da saúde mental para assegurar o atendimento telefónico atempado.

No próximo ano, o Grupo Vita quer ter a funcionar uma bolsa nacional de profissionais, que abarcará psicólogos e psiquiatras especializados na intervenção junto de vítimas e autores de abuso sexual nas diferentes zonas geográficas do país, mas que abarcará também a concessão do apoio social ou jurídico que se vier a revelar necessário para crianças e adultos vulneráveis que tenham sido vítimas de agressão sexual.

Até lá, as vítimas poderão recorrer a outros profissionais e apresentar a respectiva factura à Igreja, que se predispôs a custear os tratamentos – por estes dias, a Igreja estará já a apoiar perto de 30 vítimas de abusos, segundo adiantou na passada semana o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. José Ornelas.

Com um calendário de trabalhos que abarca os próximos três anos, o Grupo Vita terá uma intervenção “isenta e autónoma”, mas trabalhará em estreita articulação com a equipa de coordenação nacional das comissões diocesanas criadas nas diferentes dioceses para dar resposta ao flagelo dos abusos sexuais. Dele farão parte, além de Rute Agulhas, as psicólogas Alexandra Anciães, com experiência de avaliação e intervenção com vítimas e agressores sexuais, e Joana Alexandre, docente universitária e investigadora na área da prevenção primária dos abusos sexuais.

No novo grupo operacional estarão ainda o assistente social Jorge Neo Costa, a psiquiatra Márcia Mota, especialista em sexologia clínica e na intervenção com vítimas e agressores sexuais, e, finalmente, o psicólogo e docente universitário Ricardo Barroso, também especialista em intervenção com agressores sexuais. O organigrama do grupo inclui ainda um conselho consultivo composto pelo penalista Silva Ramalho, pela socióloga especialista em estatística Helena Carvalho e pelo canonista João Vergamota.

Sem um fim temporal definido — inicialmente, D. José Ornelas tinha apontado um mandato de três anos —, os técnicos apresentaram uma agenda de trabalhos onde surgem como tarefas prioritárias o acolhimento e o acompanhamento das vítimas, além da elaboração de um manual de prevenção, bem como de vários recursos capazes de ajudar vítimas e agressores e que passarão a constar do site www.grupovita.pt.

“Os grandes objectivos deste grupo são proteger, prevenir recidivas e prevenir situações abusivas”, enumerou a coordenadora do Vita, cujos técnicos assumirão ainda a tarefa de formar os membros da Igreja Católica nas questões da prevenção e de encaminhar denúncias de abuso sexual de crianças ou adultos, actuais ou antigas, e encaminhar a respectiva denúncia para as entidades competentes, “civis, penais e canónicas”.

Indemnizações são com as dioceses

O objectivo é que, com o passar do tempo, as tarefas deste grupo de técnicos sejam “gradualmente assumidas pelas comissões diocesanas e institutos religiosos”, conforme adiantou Rute Agulhas. A ideia “não é de forma alguma esvaziar a função das comissões diocesanas”, mas antes ajudá-las a ganhar a confiança das vítimas para que estas passem a recorrer mais a estas estruturas que surgiram ao longo de 2020 directamente ligadas à hierarquia das respectivas dioceses, embora sejam actualmente compostas exclusivamente por leigos.

Para reforçar esta ideia, o coordenador da equipa nacional das comissões diocesanas, José Souto Moura, lembrou que “tudo o que tenha que ver com aspectos sancionatórios” permanecerá na alçada destas comissões. “Não pode haver processo canónico sem uma investigação e essa investigação é do bispo que normalmente delega nas comissões diocesanas”, esclareceu.

Do mesmo modo, não competirá ao grupo liderado por Rute Agulhas gerir as questões relacionadas com a reparação financeira das vítimas, em tudo o que vá para além do estrito ressarcimento do custo do tratamento psicológico, psiquiátrico ou farmacológico. “Não teremos, em relação a isso, qualquer tipo de intervenção, directa ou indirecta. Limitar-nos-emos a encaminhar tais pedidos para as dioceses”, avisou Agulhas.

Descartada ficou a sugestão de criação dentro do Serviço Nacional de Saúde (SNS) de uma “via verde” prioritária para as vítimas de abuso sexual perpetrado em meio eclesial, que lhes chegou pelas mãos do psiquiatra Daniel Sampaio, um dos co-autores do relatório Dar Voz ao Silêncio, que estimou em 4815 as crianças vítimas de abuso dentro da Igreja nos últimos 72 anos.

“Criar canais prioritários dentro de um SNS que tem dificuldade em dar resposta a todas as necessidades é deixar pessoas para trás. Entendemos que este caminho não é uma verdadeira solução. Todas as pessoas têm direito a ajuda e não existem vítimas apenas no contexto da Igreja. Temos muitas vítimas de abuso sexual noutros contextos: vítimas de violência doméstica, de assédio moral e sexual, de bullying. Todas as vítimas, sem excepção, têm direito a ser ajudadas, e privilegiar umas em detrimento de outras seria uma injustiça social”, criticou.

Considerando também a escassez de profissionais de saúde mental no SNS, a coordenadora do Vita considerou que “há caminhos mais inclusivos e mais justos do ponto de vista social”. Aos jornalistas, Souto Moura também se mostrou avesso à possibilidade de “meter pessoas à frente numa lista de espera” que pode somar vários meses. “Não sei até que ponto esta discriminação seria bem recebida, até do ponto de vista da imagem pública do SNS”, declarou.

Reabilitar agressores

Além de apoiar as vítimas, o Grupo Vita procurará prevenir recidivas, por via do acompanhamento dos membros da Igreja que estejam suspensos do exercício do ministério ou outras pessoas que venham a ser referenciadas pelas dioceses e que desejem acompanhamento psicológico ou psiquiátrico. “Podem ser pessoas que reclamam a sua inocência e estão a ser acusadas de terem cometido um crime ou pessoas que reconhecem o seu comportamento abusivo e pedem ajuda”, adiantou Agulhas.

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Maria Abranches

Questionado pelos jornalistas sobre a concreta possibilidade de reabilitação dos agressores sexuais, o psicólogo Ricardo Barroso apontou exemplos no estrangeiro para sustentar a ideia de que é possível, em muitos casos, “suscitar mudanças comportamentais na pessoa”. “Esta intervenção terá de ser feita de modo planeado e estruturado e surge paralelamente a qualquer processo penal, cível ou canónico, que esteja em curso. Não há lugar a qualquer processo de ilibação do agressor das práticas abusivas. O que na verdade pretendemos, paralelamente à responsabilização, é evitar a reincidência dos abusos”, sustentou o psicólogo.

“O que tipicamente acontece é que os agressores sexuais são responsabilizados judicialmente, cumprem a medida disciplinar ou penal aplicada e o processo tende a ficar por aí, subentendendo-se que, após a medida penal, o problema fica resolvido. Mas as coisas são muito mais complexas e não se cingem à dimensão penal ou disciplinar”, insistiu, admitindo que poderá haver casos em que a intervenção psicoterapêutica é insuficiente, podendo ser por isso “necessário recorrer a outro tipo de medidas”.

A cada seis meses, o Grupo Vita divulgará um relatório de actividades – o primeiro foi aprazado para Dezembro. Além disso, vai ser preparado um programa de prevenção do abuso sexual destinado às crianças desde o pré-escolar, a ser utilizado nos diversos contextos religiosos, “abordando temas como o corpo, os toques, as emoções”, bem como a aprendizagem “da capacidade de dizer não e de pedir ajuda”, segundo Rute Agulhas.

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