A culpa é a maior inimiga do luxo

A palavra luxo passa a ter um significado completamente diferente quando nos tornamos mães.

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@designer.sandraf
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Querida Ana,

Dormiste bem? Conseguiste almoçar sentada, e em paz? Foste capaz de começar e acabar um pensamento, sem que um deles te interrompesse o fio do raciocínio?

Ah, pois é, a palavra luxo passa a ter um significado completamente diferente quando nos tornamos mães. Tantas coisas que dávamos como garantidas, absolutamente banais, transformam-se, de um dia para o outro, em preciosidades valiosas.

Como o sono, o dormir de uma assentada só, e não em episódios que se sucedem em solavancos imprevisíveis. As noites com um bebé assemelham-se assustadoramente a uma tortura, em que, quando acabámos de mergulhar no mais profundo dos sonos, o cansaço acumulado a cobrir-nos como lava, somos despertos pelo seu choro, que nos arrasta do fundo do poço, numa agonia física difícil de descrever.

Mas acordamos sempre graças à ocitocina, a hormona-maravilha que nos permite, depois deste “mau trato”, ainda sermos capazes de sossegá-lo com uma voz tão doce e serena que nem nós mesmas sabemos de onde vem.

Ana, e a taquicardia que dá quando olhamos para as horas e percebemos que só falta uma hora para que o despertador toque, e nos obrigue a levantar-nos para começar a correr, mais um dia em versão coelho da Alice no País das Maravilhas, sempre a gritar “estou atrasada! Estou atrasada!”?

Quando conseguimos que alguém fique com os nossos filhos por uma ou duas noites que seja, sentimos que ganhámos a lotaria ou acabámos de herdar uma tiara de diamantes. Porque mais do que o dormir é perder o medo de não dormir, conquistando a liberdade de ler um livro ou ver uma série na televisão, sem aquela aflição constante do “que loucura, não estar a aproveitar para fechar os olhos antes que um deles me acorde!...” Pensamento que ensombra qualquer prazer.

É nesses momentos que percebemos como a liberdade de gerir o tempo como bem entendemos é o maior luxo imaginável. Um luxo que, sobretudo nós, mulheres, desbaratamos, tantas vezes pela culpa de não estarmos a cumprir com as obrigações que nos impomos e, mais grave, que uma certa imagem de mulher que assimilámos sem saber como nos leva a cumprir.

Por isso, Ana, esta carta é, acima de tudo, uma birra à culpa, a maior inimiga do luxo. À malfadada culpa que arrastamos connosco como um pecado original de que nenhum baptismo nos parece livrar.

Pela minha parte, e já livre das noites sistematicamente mal dormidas, prometo-te que vou começar por tentar superar a culpa de:

  1. Odiar acordar cedo. E sentir remorsos por não te ajudar a levar os miúdos à escola.
  2. Não saber, nem querer aprender, a usar os tachos e as panelas, e o remorso por não ser fada do lar.
  3. Não agir imediatamente perante a notícia de uma guerra, do naufrágio de um barco de refugiados, da lista de crianças em instituições, do escândalo do negócio das “barrigas de aluguer”.

E tu, quais são os antiluxos que vais abater?


Querida Mãe,

Tem razão, ter filhos relembra-nos mesmo o que é essencial. Mas há aqui uma dificuldade acrescida: é que a mera palavra “luxo” provoca imediatamente culpa. Como desde sempre a associámos a qualquer coisa de supérfluo, acessório, de que já se tem muito, ou sinónimo de alguém muito mimado, o resultado é que vejo todas as mães à minha volta a patinarem nesta confusão. A negarem-se tanta coisa que não são mais do que necessidades básicas.

Mãe, consideramos “luxo”, por exemplo, pedir ao nosso marido que fique com eles para nos sentarmos a jantar em sossego, para ir à ginástica, ou mudar a hora de uma reunião porque precisamos mesmo de dormir mais uma hora. Vejo tantas mulheres fortes, independentes e que são capazes de gerir grandes problemas no emprego a andarem com pezinhos de lã à volta do marido, como medo de o “cansar” a pedir de mais. E repare, mãe, não é que o marido seja o “mau da fita”, ou assuma o papel de pai do antigamente, somos nós, mulheres, que fazemos estes filmes. Que temos tanta dificuldade em largar o tal papel de mulher-mãe-fada-do-lar-perfeita e partilhar o cuidado dos filhos.

Por isso, estou consigo. E tenho uma novidade, resultado da minha experiência na vida real nestes últimos tempos: quando decidimos conceder-nos um luxo, a princípio aguentar a culpa é horrivelmente desconfortável, mas, com a prática e a repetição, torna-se muito mais fácil e traz benefícios para toda a família. Ou seja, o luxo compensa!

Estes são três luxos que dou a mim mesma:

  1. Ir a um treino de escalada uma vez por semana, o que me provocava uma dupla culpa — o dinheiro e o tempo gasto! —, mas foi a melhor decisão que tomei este ano lectivo. Ainda resiste uma culpazinha, mas não lhe vou ligar!
  2. Adormecer à mesma hora que os miúdos — tem-me feito lindamente, claramente preciso daquele tempo de sono.
  3. Brincar com eles sem me desgastar a pensar que podia/devia estar a fazer qualquer coisa mais “produtiva”.

Boa sorte com as suas culpas e obrigada pelo desafio de calar as minhas!

Beijinhos,

Ana


No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.

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