A morte do meio-termo na era do oito ou oitenta

Antes, a resposta a “como vai?” era um “vai-se andando” que dissimulava mil e um problemas. Hoje, partilham-se vídeos nas redes sociais a chorar e a expor o sofrimento sem limites. E o meio-termo?

Foto
Megafone P3: Meio-termo na era do oito ao oitenta Verne Ho/ Unsplash

Passámos do oito para o 80 de uma maneira tão abrupta que tive de reflectir sobre ela. Antes, era tabu abordar os temas da saúde mental e, perante a ordinária questão "como é que vai isso?", havia sempre um "vai tudo andando" que dissimulava mil e um problemas, mas que funcionava como força equilibrante da missão de existir, de trabalhar diariamente e de manter a chama acesa.

Poucas dezenas de anos depois tornou-se viral a exposição do sofrimento psicológico, do trauma da infância, do abuso sexual e da agressão física nas redes sociais. Ver vídeos de pessoas a chorar no Instagram, com uma expressão sofrida em todas as linhas do rosto, sobretudo nos vídeos do Reels que mostram os momentos do ano que passou em retrospectiva, tornou-se banalidade.

Não há meio-termo.

Também passámos de uma narrativa em que os conceitos de sucesso e felicidade estavam altamente dependentes do encontro amoroso com alguém que se fecharia numa casa connosco para sempre — e com o qual asseguraríamos a continuidade da linhagem familiar —, para uma não narrativa relacional. A resposta "é complicado" disponível na secção do Facebook para responder ao status relacional é bem representativa do que se vive, actualmente, no mundo das relações amorosas.

De donas de casa a donas do nosso nariz, de “sou-tua-amor” para “deixa-me-ser-de-mim-para-sempre”, de “faz-me-uma-criança” para “deixa-me-curar-a-criança-interior”, parecemos tão unidos nesta inegável vontade de nos conectarmos e de nos abrirmos ao amor, mas ao mesmo tempo tão incapazes e tão confusos quanto ao que fazer na era do "sê tu mesmo" e do "vive a liberdade até ao limite".

Não há meio-termo.

Transitámos, também, de uma necessidade de participar do mundo laboral como forma de necessidade básica (dinheiro) e como forma de ocupação de vida para um lugar utópico com a inscrição "se não é um trabalho de sonho, não faças". Então e as pessoas que asseguram a limpeza das fossas, que plantam, regam e colhem a comida que nos chega à mesa todos os dias, que trabalham para garantir as nossas necessidades básicas, são o quê, essas pessoas? As "não-sonhadoras", as "não-missionárias"?

Não há meio-termo.

Mais ainda, passámos da aquisição do conhecimento através da escolaridade, literatura, estímulo social, cultural e educacional, artes no geral (e o cinema em particular), o pensamento crítico, o investimento em viagens e oportunidades de expansão pessoal para o acesso imediato (como se do chupa-chupa disposto no cesto da mercearia ao lado de casa se tratasse) a uma plataforma de inteligência artificial chamada chatGTP, que nos dá resposta a tudo, mesmo tudo.

Não há meio-termo.

Se bem me lembro, existe uma disciplina na escola chamada Estudo do Meio. Que maravilhoso seria que dela fizessem parte os temas da necessidade de equilíbrio, harmonia, auto-regulação e disciplina. Lembro-me também que, em Matemática, aprendemos desde logo que "menos com menos dá mais". Essa seria uma máxima que, integrada nas agendas políticas das classes dominantes e das grandes corporações, poderia levar ao sonho do "meio-termo".

Sugerir correcção
Ler 5 comentários