Apesar de as estatísticas revelarem que o gosto da maioria dos consumidores se divide entre o Alentejo e o Douro, existe um curioso interesse de grandes produtores nacionais pelas regiões vitícolas geograficamente mais afastadas entre si. A saber: Vinhos Verdes, Algarve e Açores. Como cada caso é um caso, vamos hoje ao Sul do continente para perguntar o que é que o Algarve tem e por que razões grandes grupos empresariais querem acrescentar aos seus portefólios vinhos algarvios?
E, já agora, quererão esses operadores fazer vinhos algarvios ou apenas fazer vinhos no Algarve? A resposta não será linear, mas parece haver um denominador comum na ressurreição dos vinhos genuinamente algarvios: a casta Negra Mole. Isso é uma boa notícia.
A Negra Mole é engraçada. Dá cachos com uvas tintas, rosadas em diferentes tons ou brancas. Segundo Sara Silva, presidente da Comissão Vitivinícola do Algarve, é “a segunda mais antiga do país (depois da Cercial)” e aquela que, segundo Antero Martins — geneticista que estuda as nossas castas há muitas décadas — apresenta a maior riqueza varietal que se encontra nas vinhas velhas em Portugal, coisa que se deve ao facto de o vinho fazer parte da cultura algarvia há mais de 2000 anos.
Na realidade, e como acontece com outras castas ditas nacionais, o mais correcto é dizer que a Negra Mole é uma casta ibérica, visto existir desde sempre no Sul de Espanha. Já agora, a Negra Mole não é a Tinta Negra da Madeira. São coisas diferentes.
Se nas últimas décadas do século XX os vinhos do Algarve não ensinaram nada a ninguém (vinhos desequilibrados e desinteressantes), a partir do ano 2000 os produtores Adega do Cantor (do famoso Cliff Richard), Essential Passion (marca João Clara), Cabrita Wines, Herdade do Barranco do Vale e outros começaram a lançar no mercado pequenas produções de vinhos que ora exploravam a Negra Mole e algum Crato Branco (Síria), ora resultavam de vinhas replantadas com castas nacionais e/ou estrangeiras.
Mas o que mudou e continuará a mudar os cenários do vinho algarvio é a chegada ao território de empresas de dimensão, como a Aveleda, a Casa Santos Lima, a Sogrape, a Abegoaria e a Terras & Terroir, o grupo de Maria do Céu Gonçalves que a partir da Quinta da Pacheca já comprou quintas em diferentes regiões do país e agora tem o Algarve na mira.
Se a Casa Santos Lima, como grande operador nacional, tem uma vocação marcadamente exportadora, os outros produtores parecem ter mais interesse em apostar no próprio mercado regional, por via dos fluxos turísticos que a região recebe. Os números recentes são interessantes. De acordo com Sara Silva, entre 2019 e início deste ano, “a certificação de vinhos do Algarve cresceu 37 por cento, pese embora falarmos de apenas 1,7 milhões de garrafas Denominação de Origem Controlada e Indicação Geográfica”. Como área autorizada para a produção de vinhos certificados, existem 1400 hectares, sendo que só 700 hectares estão em produção, situação que está, também, na origem do interesse dos novos investidores.
Esta área dos 700 hectares é trabalhada por 50 empresas engarrafadoras e 52 produtores de uvas, sendo que a variedade mais procurada é a Negra Mole (neste momento, existem 55 hectares em produção), que se vende ao preço das uvas Alvarinho (mais de 1 euro por quilo). Quem diria! É tal o interesse pela casta que arranjar material vegetativo para plantar novas vinhas não é fácil. Mais, como a casta tem a tal riqueza intravarietal, há produtores que exibem com orgulho novas vinhas de Negra Mole com clones diferentes que tinham nas suas vinhas velhas e que, naturalmente, produzem vinhos com perfis diferenciados.
Podemos parecer um disco riscado, mas a justificação para o interesse recente dos produtores e de um certo nicho de consumidores pela Negra Mole é a mesma que leva gente a olhar para coisas como Castelão, Rufete, Jaen, Bastardo ou os vinhos de talha: a saturação face aos vinhos demasiadamente padronizados, quer por via das castas quer por via da tecnologia de adega, que é igual entre Monção e a Madalena, no Pico.
Os vinhos Negra Mole começam a encantar desde logo pela cor, consideravelmente mais aberta do que a maioria dos tintos portugueses. Como numa vinha encontramos cachos com bagos de diferentes cores, o resultado, em cada vindima, nunca é muito certo, mas as coisas andarão quase sempre pelos tons atijolados.
Em matéria de aromas sentimos uma mistura entre certas notas vegetais e frutos vermelhos de baga. Na boca regressam as notas vegetais num corpo mais leve e delicado e quase sempre com especiarias. Apesar de a acidez não ser o seu forte, os vinhos são frescos e desafiantes à mesa, inclusive com o vasto receituário tradicional algarvio à base de peixes. De uns carapaus alimados à cataplana com o tomate presente e passando pela muxama, um tinto Negra Mole fica sempre bem.
E mais. Na senda do que acontece noutras regiões, os produtores algarvios perceberam que a casta pode ser trabalhada para diferentes estilos de vinhos, que é o que se verá a seguir a partir de uma prova feita no Algarve com os mais recentes vinhos certificados de Negra Mole.
Nome Cabrita Espumante 2016
Produtor Cabrita Wines
Castas Negra Mole
Região Algarve
Grau alcoólico 12 por cento
Preço (euros) 34,50
Pontuação 92
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Aqui está um espumante que só é bem percebido com quatro datas. O vinho base, de Negra Mole, é de 2016. Parte ficou em inox e parte em barrica. Em 2018 inicia-se a espumantização (segunda fermentação), que se prolonga até 2020, altura em que se faz o dégorgement. A saída para o mercado ocorre em 2022. O que se nota neste espumante é uma ligação subtil entre a fruta da casta, as notas de pastelaria e o estágio do vinho base em madeira. Na boca, cremoso e seco. Um bom exercício.
Nome Al-Mudd Blanc de Noir 2021
Produtor Sul Composto
Castas Negra Mole
Região Algarve
Grau alcoólico 12 por cento
Preço (euros) 10
Pontuação 91
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Aromaticamente pouco expressivo – como qualquer vinho blanc de noir nos primeiros anos de vida –, tem, todavia, algumas notas muito intrigantes de frutos secos, com destaque para a amêndoa amarga e as ervas aromáticas. Na boca, mais frutos secos, algum mineral e acidez moderada.
Nome Herdade do Barranco do Vale Rosé 2021
Produtor Herdade do Barranco do Vale
Castas Negra Mole
Região Algarve
Grau alcoólico 12,5 por cento
Preço (euros) 12
Pontuação 90
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova A partir de vinhas com 70 anos temos um rosé que cheira a frutos vermelhos (morango e groselha), com uma boca com bastante volume, salinidade e equilíbrio entre a estrutura e as notas doces que um rosé clássico apresenta.
Nome Al-Mudd Clarete 2021
Produtor Sul Composto
Castas Negra Mole
Região Algarve
Grau alcoólico 13,5 por cento
Preço (euros) 10
Pontuação 93
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Aqui está um vinho que só prova que esta categoria tem, em Portugal, um potencial gastronómico tremendo. Sim, o sector deveria apostar mais nos claretes, que são diferentes dos palhetes por serem feitos só com as uvas tintas (no palhete temos as duas). Frutos vermelhos e notas de rebuçado de alcaçuz. Boca muito elegante, delicada, longa e com ligeiras notas de barrica.
Nome Despedida Tinto 2021
Produtor Casa Santos Lima
Castas Negra Mole
Região Algarve
Grau alcoólico 13,5 por cento
Preço (euros) 9
Pontuação 94
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Vinho bastante exuberante, a puxar para os aromas de flores e frutos (ginja e cerejas), os mesmos frutos que vão regressar na boca, agora com sensações vegetais que dão vivacidade e elegância ao vinho.
Nome Quinta da Penina Tinto 2019
Produtor Quinta da Penina Vinhos
Castas Negra Mole
Região Algarve
Grau alcoólico 14 por cento
Preço (euros) 11
Pontuação 92
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova De umas vinhas muito velhas do Algarve e plantadas em pé franco nasce um vinho com um perfil mais carregado do que é habitual num tinto de Negra Mole. Tinto com fruta compotada e, na boca, com sensações especiadas e extração quanto baste.
Nome Lagoa Signature Tinto 2022
Produtor Única – Adega Cooperativa do Algarve
Castas Negra Mole
Região Algarve
Grau alcoólico 13 por cento
Preço (euros) 10
Pontuação 91
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Depois da cor rubi brilhante, destaque para as notas aromáticas a fazer lembrar o mosto em fermentação na adega. Na boca, fruto vermelhos, casca de uva, especiarias e taninos bem redondos.
Nome Morgado do Quintão Clarete 2020
Produtor Morgado do Quintão
Castas Negra Mole
Região Algarve
Grau alcoólico 12,5 por cento
Preço (euros) 14
Pontuação 94
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Notas aromáticas a indicar maior maceração do mosto (fruta compotada), que se misturam com cheiros de folha de tabaco. Na boca, belo equilíbrio entre as notas vegetais e a acidez e sensações especiadas. Um vinho claramente gastronómico.
Nome Cabrita Tinto 2021
Produtor José Manuel Cabrita
Castas Negra Mole
Região Algarve
Grau alcoólico 13 por cento
Preço (euros) 10 a 11
Pontuação 93
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova De novo num registo de maior extração, sentimos notas mais lácteas (café) e de frutos maduros no nariz. Regresso das especiarias que fazem parte da identidade da casta e grande volume de boca.
Nome Arvad Negra Mole Tinto 2021
Produtor Arvad
Castas Negra Mole
Região Algarve
Grau alcoólico 12,5 por cento
Preço (euros) 15
Pontuação 93
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Tinto bastante fresco, com muitos frutos vermelhos no nariz (destaque para a romã) e aquelas sensações típicas de vinhos que estagiaram em barro (ânforas de 750 litros). Boca com fruta e notas vegetais, mas, acima de tudo, finíssima e aveludada. Bem bom.
Nome João Clara Tinto de Ânfora 2021
Produtor João Clara
Castas Negra Mole
Região Algarve
Grau alcoólico 12,5 por cento
Preço (euros)
Pontuação 92
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Um caso de recuperação de uma prática antiga e naturalmente mais praticada no Baixo Alentejo. O resultado é um vinho marcado por notas mais extraídas e terrosas e com bom volume de boca.