“Se pensarmos em Algarve, temos que pensar em Negra Mole”

De mal-amada, não muito querida e pouco nobre, a casta autóctone do Algarve — e segunda mais antiga de Portugal — ressurge agora mais trabalhada, com um perfil autêntico.

Foto
Vinhas velhas Herdade Barranco do Vale em São Bartolomeu de Messines Herdade Barranco do Vale

Existe um “jardim” em Alcantarilha que é uma vinha quinquagenária e que significa muito para o Algarve e para o posicionamento da actividade vitivinícola da região. Nasceu na Quinta João Clara, adquirida por João Maria Alves em 1965, a vinha que décadas depois daria origem a um Negra Mole que de certa forma mudou o rumo da história de uma casta autóctone e mal-amada que no século passado chegou a representar 75 por cento dos vinhedos algarvios. Hoje, ainda resistem algumas vinhas históricas em pé-franco, a maior parte em solos de areia. E há quem lute por elas — com convicção.

O projecto João Clara já conta com três gerações. Depois do pioneiro, João Maria Alves — o João “Clara” —, e da visão do seu filho Joaquim João, neste momento seguem os sonhos de Joaquim as suas filhas Ana e Joana e a sua esposa, Edite Alves, que mantêm os 14 hectares de vinhas e o “jardim”, a vinha velha de Negra Mole que sempre foi a menina dos olhos da família. “Essa vinha foi plantada pelo João Maria Alves, meu sogro, que tinha uma grande paixão pela Negra Mole. Fazia vinho caseiro e o resto levava para a Adega Cooperativa de Lagoa. Sempre houve o desejo de se fazer um vinho de qualidade e decidimos avançar após a morte do meu marido. ‘Temos que fazer! A ver o que sai daqui'”, recorda em conversa com o Terroir. O tinto (estágio em barrica durante 15 meses) surgiu em 2011. “Fomos a primeira quinta a lançar um Negra Mole de qualidade”, sublinha Edite, recordando Cláudia Favinha, enóloga responsável na altura, e Joana Maçanita, nas rédeas da produção de vinhos Negra Mole e de uma série de experiências bem sucedidas com aquela que é a segunda casta mais antiga de Portugal mencionada em obras publicadas no século XVIII.

Foto
O projecto João Clara já conta com três gerações Quinta João Clara

Por si só, isso é razão suficiente para eu cultivar e incentivar à produção destes vinhos”, justifica Maçanita, assumida “embaixadora” da casta, referindo-se à sua Negra Mole, que ficou “quase esquecida e negligenciada”. “Estamos a falar de apenas dois por cento do encepamento algarvio. O paradigma tinha que ser mudado”, afirma a enóloga (agrónoma de formação) que se especializou em consultoria enológica e que tem incentivado os produtores com quem trabalha — para além dos vinhos da Quinta João Clara, faz os Cabrita Wines (Negra Mole tinto, Blanc de Noir e Rosé), os Morgado do Quintão (Clarete, Palhete e Espumante) e o Malaca Rosé da Quinta da Malaca — a plantarem e a desenvolverem a casta algarvia por excelência, cachos com tamanho médio, bagos grandes, ligeiramente achatados, e uma coloração não uniforme, de negro-azul a rosado. “A casta Negra Mole é a casta mais versátil que eu conheço”, afirma Joana ao Terroir. A Negra Mole é uma casta de maturação tardia, resistente à seca. Tradicionalmente, dá origem a vinhos tintos com cor aberta, com um aroma floral e frutado, com taninos suaves. Normalmente dá origem a um vinho tipo Pinot Noir, com cor aberta, de cor rosada a rubi claro, com um perfil aromático agradável. Durante muitos anos, esta cor aberta da Negra Mole foi criticada e, para colmatar este problema, fazia-se um blend inicialmente com o Castelão e, depois do ano 2000, com o Aragonez. Hoje em dia, não se fica por aí. “Permite fazer tintos, fazer rosés, brancos e espumantes. É tricolor no cacho já completamente maduro. Posso pegar neste produto e diversificá-lo. Posso fazer todo um portefólio de um produtor com uma única casta. E isso é incrível!”

Foto
O interesse na casta "tem ajudado a colocar o vinho Negra Mole no mapa" do Algarve Comissão Vitivinícola do Algarve

O primeiro João Clara Negra Mole surgiu em 2011. “Fizemos o primeiro Negra Mole do Algarve que veio desconstruir a ideia da casta e afirmar o potencial da casta, que era pouco nobre”. Quem diria! “Um vinho cem por cento Negra Mole, cem por cento em barrica! E foi um sucesso”, recorda Joana Maçanita. “As pessoas entenderam o potencial e a complexidade da casta”.

E surgiu o rosé cem por cento Negra Mole, o Espumante Negra Mole e outras “brincadeiras” e uma série de produtores atraídos pela credibilidade da casta. “O mercado local começou a comprar vinhos algarvios e não só os Verdes e os Douro”, recorda Maçanita. “Grupos como a Casa Santos Lima e a Quinta da Aveleda quiseram vir para o Algarve fazer vinhos, o que nos fez pensar que estávamos a fazer um muito bom trabalho. A Negra Mole já estava a encabeçar essa missão de encontrar uma identidade para os vinhos do Algarve.”

Recuperar os “jardins dos bisavós e dos trisavós"

Esse tem sido também uma das principais missões da Comissão Vitivinícola do Algarve (CVA), concentrada no ressurgimento na região da vitivinicultura e na criação de sinergias entre o turismo e o vinho. “Passámos de ser uma casta não muito querida e nada associada à qualidade, a uma casta com um perfil autêntico e diferenciador, muito versátil e de características únicas”, ressalva Sara Silva, presidente da CVA, com 50 produtores registados, entre 30 e 40 com marcas, cerca de 15 a usar a Negra Mole. “Já poucos colocam uma cruz em cima da casta”, que é como quem diz que há menos produtores a dizer não à casta.

Esse investimento, continua, passa por “uma melhor interpretação da casta sem a desvirtuar” e pela produção de “melhores vinhos e mais equilibrados”. Actualmente, são identificados vinhos “menos alcoólicos, menos pesadões e menos encorpados”, perfil que “encaixa que nem uma luva no mercado algarvio turístico por excelência, mais leve e menos alcoólico”.

Se a “experimentação tem corrido muito bem”, o interesse nesta casta “tem ajudado a colocar o vinho Negra Mole no mapa da região”, afirma Sara Silva. Vai mais longe Joana Maçanita, “um fósforo de ignição” na divulgação da Negra Mole e “orgulhosamente” na defesa da casta: “Tem que ser sem dúvida o símbolo do Algarve! Tal como se pensarmos em Provence, pensamos em rosé, se pensarmos em Algarve, temos que pensar em Negra Mole. O mais valioso que Portugal tem é a sua história e a sua cultura e é essa que temos que manter viva e estanque e salvaguardá-la para todo o sempre”.

Foto
Há quem lute pela Negra Mole — com convicção Comissão Vitivinícola do Algarve

Pelo Algarve, a maior parte dos donos de Negra Mole têm vinhas antigas, com cerca de 40 a 70 anos, “pequenos ‘jardins’ no Algarve” protegidos de todo “um mundo de produção moderna de vinho”. “O que fazemos é de certa forma recuperar os jardins dos bisavós e dos trisavós destes produtores, pequenas produções, vinhas que não produzem muito e daí a sensação de estarmos a recuperar algo que é muito precioso e que temos no nosso quintal.”

“É cem por cento Algarve”, diz Edite Alves, com vista sobre o seu “jardim” feito de “vinha muito antiga, plantada muito rente ao chão”. “Para a podar e vindimar é preciso estar quase sentado”.

Sugerir correcção
Comentar