Um observatório branco
O Governo escolheu propositadamente alguém com um percurso de relevo no feminismo e não no antirracismo, ponto.
Depois de toda a discussão pública sobre (anti-)racismo, de reivindicação e formulação de políticas de combate ao mesmo, o atual Governo decide nomear uma pessoa branca para dirigir o que parece agora chamar-se Observatório do Racismo e Xenofobia (ORX).
A minha crítica à escolha de Teresa Pizarro Beleza para dirigir o ORX em nada desmerece o percurso relevante que esta tem no campo das questões de género, seja na academia, seja no campo do debate público e político. Mas não tem um histórico relevante de investigação na área do racismo, de trabalho nas instituições nacionais e internacionais que tutelam essa pasta ou de envolvimento com as organizações de base ligadas ao movimento antirracista negro, Roma/cigano ou imigrante. O Governo escolheu propositadamente alguém com um percurso de relevo no feminismo e não no antirracismo, ponto.
É certo que é alguém do campo do direito e que a legislação tem sido um calcanhar de Aquiles do combate ao racismo. Contudo, desconhece-se a sua posição teórica e política em questões-chave nesta matéria. Reduz o racismo às situações em que se prova a existência de intencionalidade individual ou de organizações extremistas de tipo neonazi, como até agora, ou vai além disso? Considera ou não que deveria ser um crime público e que deveria deixar de ser sobretudo uma “infração administrativa” e passar para o direito penal?
O sinal que nos é dado com esta nomeação é que as “discriminações” são todas mais ou menos a mesma coisa e que as questões raciais têm menor complexidade que as de género, constituindo-se como uma espécie de parente pobre dos movimentos e reivindicações sociais. Não ocorreria colocar à frente de uma instituição de promoção da igualdade de género um homem cisgénero cujo percurso fosse o combate à discriminação racial e sem conexões sólidas ao feminismo e ao debate sobre as desigualdades de género. A escolha de pessoas/sectores externos ao campo é um modo de exercer controlo à distância para que nada mude efetivamente. O mismatch não é de agora, nem casual. O combate ao racismo tem estado (mal) enquadrado na pasta das migrações, mesmo que sejam universos legais e populacionais distintos. Para além disso, recorde-se que, em 27 anos de existência, o cargo de Alto-Comissário para as Migrações nunca foi ocupado por uma pessoa racializada ou imigrante.
Pergunto-me ainda qual será o posicionamento dos feminismos brancos aliados, que nos últimos anos têm vindo a apropriar-se da ideia de interseccionalidade, sobre esta falta de representatividade na direção de uma instituição como o ORX. Talvez muitas considerem que podia ser pior e que, embora fosse melhor alguém racializado, a opção tomada é tolerável, mesmo que isso seja adiar mais uma vez a hora de dar lugar a pessoas negras e Roma/ciganas numa instituição pela qual lutaram, e na qual deveriam ser agora protagonistas. Gostava, sobretudo, de ouvir uma discussão sobre como há nesta escolha para a direção do ORX uma manipulação do movimento feminista para com “legitimidade” ocupar o lugar e silenciar a voz das pessoas racializadas. Quem conhece minimamente o feminismo sabe como a questão racial é um velho elemento de cisão interna, sabe das tensões entre os feminismos brancos pequeno-burgueses e os feminismos negros e Roma/ciganos, e saberá também que, com esta escolha governamental, se dá mais uma machadada nessa relação.
O mesmo Governo que no Plano Nacional de Combate ao Racismo exorta instituições do Estado e do sector privado a implementar mecanismos de recrutamento e contratação promotores da diversidade falha, num momento crucial, em fazê-lo. Não é um bom prenúncio se a isso juntarmos o “troca-tintismo” em torno do (não) reconhecimento do racismo institucional na sociedade portuguesa. Não é um bom prenúncio se atendermos à forma como o Governo se tem demarcado dos movimentos antirracistas da sociedade civil e apresenta o ORX como uma coisa da academia. Com esta opção sobre a direção do ORX, perdeu mais uma oportunidade de dar um sinal de compromisso e orientação às instituições e à sociedade em geral. E perdeu-a propositadamente.
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico