Troca-tintismo
Como pode o mesmo PS que lança o PNCRD aceitar o convite para participar na convenção do Chega, normalizando uma das forças mais sinistras nas democracias contemporâneas?
“O racismo não é um problema estrutural” em Portugal, disse a ministra adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, em meados do presente mês, no exato momento em que anunciava que “nos próximos dias” seria celebrado o protocolo para a criação do Observatório contra o Racismo e a Xenofobia, uma das medidas centrais do Plano Nacional de Combate ao Racismo e Discriminação (PNCRD, 2021-2025). Contradiz, assim, sem apelo nem agravo, a matriz de princípios que, apesar de tudo, o PNCRD tem e com que foi promulgada pelo Governo, em 2021.
Vale a pena citar uma das passagens do prefácio desse plano, em que a ministra de Estado e da Presidência, Mariana Vieira da Silva, diz que, “tal como solicitado pela Assembleia da República, [o PNCRD] reconhece o racismo como um problema estrutural”. É caso para se perguntar se as duas ministras fazem parte do mesmo executivo, ou se existirá no Governo um entendimento comum sobre o que entende por racismo.
Podemos também perguntar-nos se Ana Catarina Mendes terá tido contacto com a resolução do Conselho de Ministros que deu origem ao PNCRD, em que se reconhece que o racismo e respetivas “discriminações diretas e indiretas” refletem “processos históricos que os originaram, como a escravatura e o colonialismo, e que perpetuaram modelos de discriminação estruturais”. Se calhar a letra do plano é para “inglês ver”, cá dentro e, sobretudo, lá fora, perante organizações internacionais, como a ONU e outras, que têm exigido maior proatividade política no combate ao racismo.
Saberá a ministra que as propostas do PNCRD vão para além da resposta ao discurso de ódio, racista e xenófobo, e que se orienta para desigualdades étnico-raciais estruturais, com ações que vão de campanhas de sensibilização a políticas de recrutamento que visam maior representatividade étnico-racial em toda a administração pública e no acesso ao ensino superior? Como pode António Costa dizer, como fez numa entrevista infeliz em 2021, que existe uma “fratura perigosa para a nossa identidade nacional que resulta de uma visão autoflageladora da História”, mas depois o PNCRD prever a inclusão em várias disciplinas e manuais escolares de temas sobre “a diversidade e presença histórica de grupos discriminados” e questões que permitam a “exploração dos temas do racismo e da discriminação”? Incompetência? Desmemória? Uma estratégia que não olha às contradições para segurar votos, quer num “centrão” que cada vez mais guina à direita, quer na ala esquerda do PS?
Como pode o mesmo PS que lança o PNCRD aceitar o convite para participar na convenção do Chega, ladeado por dirigentes de vários partidos da extrema-direita europeia, normalizando uma das forças mais sinistras nas democracias contemporâneas? Como pode vir dizer depois, como se já não soubesse: “Aquilo que aqui ouvimos foi um incitamento ao ódio”? Tomará o PS alguma medida que condene legalmente esta sistemática violação da Constituição ou ficar-se-á por palavras vãs, como na repreensão de Augusto Santos Silva, presidente da Assembleia da República, ao líder do partido Chega por este, mais uma vez, fazer um discurso racista numa sessão parlamentar?
Mas o PS só se pode permitir estas contradições despudoradas no debate sobre o racismo porque parte das suas bases à esquerda estão quanto a isto “pacificadas”. Estivéssemos nós nos anos 1960 e provavelmente diriam algo como: “Com certeza existem excessos nas colónias, mas isso não justifica que os africanos recorram às armas.” Dirão certamente coisas como “com certeza a transfobia é um problema, mas a ação direta protagonizada por Keyla Brasil no Teatro S. Luiz é muito violenta”. Têm a sua vida, os seus direitos montados nas costas de tanta gente que historicamente lutou e transgrediu para que hoje pudéssemos viver um pouco melhor, mas esquecem-se do que permitiu chegar aqui. O privilégio é uma coisa tramada.
Recordo-me sempre da “Carta da Prisão de Birmingham” (1963) de Martin Luther King que dizia: “Confesso que nos últimos anos tenho ficado muito desapontado com os brancos moderados (...) mais devotos da ‘ordem’ do que da justiça; preferem uma paz negativa, que é ausência de tensão, a uma paz positiva, que é presença de justiça; e constantemente dizem: ‘Concordo convosco nos objetivos, mas não posso concordar com os vossos métodos de ação direta.’”
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico