A importância de uma lista de inimigos
Essas pessoas foram protagonistas de episódios marcantes, com consequências nas decisões que tomei e, provavelmente, na pessoa em que me tornei.
Ana,
Na eventualidade de uma demência decidi fazer uma lista de inimigos. Não é longa, mas está nas notas do meu telefone e digo-te isto para o caso de me esquecer dessa parte também.
Parece uma coisa contrária ao espírito cristão com que fui educada, mas o objectivo não é o de arquitectar uma vingança, nem de cultivar o ressentimento mas, pura e simplesmente, de preservar a verdade histórica da minha vida.
Essas pessoas foram protagonistas de episódios marcantes, com consequências nas decisões que tomei e, provavelmente, na pessoa em que me tornei. Ou seja, não podem desaparecer, sob risco de se eclipsarem com elas as explicações de por que é que, a determinada altura, segui por um caminho e não por outro.
Além do mais não posso correr o risco de tratar da mesma maneira os meus amigos e as raras criaturas de que realmente não gosto. Imagina que, por um azar dos Távoras, acabam no mesmo lar que eu, e eu, sem memória, os trate com a mesma consideração que devoto às pessoas que me foram sempre queridas?
Na verdade, uma experiência feita por António Damásio dá-me esperança de que seja capaz de prevenir esse risco. Conto-te: um dos seus doentes tinha uma lesão grave de uma área do cérebro que o impedia de decorar caras, interpretar expressões e fabricar memórias (ou coisa assim), o que significava que, de um minuto para o outro, esquecia a pessoa que estivera à sua frente.
Contudo, Damásio reparou que o senhor aparentemente registava “inconscientemente” quais eram os colegas de enfermaria que lhe davam um cigarro e aqueles que sistematicamente lho recusavam porque, ao fim de um tempo, evitava os antipáticos. Ou seja, por um mecanismo inexplicado, e que talvez implicasse o que chamam de “cérebro primitivo”, alguma coisa parecida com uma memória ficava lá.
Por outras palavras, suspeito que mesmo que já não lembre bem por que, nem gaste tempo a remoer o assunto, vou sempre distinguir os bons dos maus da fita. Mas, na dúvida, a lista fica feita.
Ana, está nas minhas notas, não te esqueças.
Querida Mãe,
Ui, das duas uma, ou a lista é incrivelmente curta ou a mãe tem ódios que desconheço, mas, OK, não só vou preservar a sua lista de inimigos, como prometo que no seu enterro só os deixo sentarem-se nos bancos mesmo, mesmo ao fundo da igreja.
Mas antes disso precisamos de clarificar algumas coisas importantes:
1. Se depois da sua morte mostrarem arrependimento, podemos perdoá-los? Ou devemos manter a raiva?
2. Se devemos manter a raiva, deve ser só na nossa geração ou é para a passar para os nossos filhos e netos? Qual é o prazo de prescrição?
3. É importante que meta na cabeça, desde já, que não concordo nada que sejam os nossos inimigos a fazerem de nós quem somos. A sua reacção ao que a pessoa x ou y fez, depende de si e não da acção que ela praticou, ou seja, podemos tirar-lhe o mérito de a ter ajudado a ser a pessoa espectacular que é. E, mãe, vendo as coisas por esse prisma, talvez nunca compense ter uma lista de inimigos, porque um dos grandes objectivos da nossa vida deve ser ter tantas e tantas memórias boas, e tanto amor, no presente, que não sobra espaço para mais nada, não sobrando outro remédio ao cérebro senão apagar os episódios mesquinhos e a cara e os nomes dos nossos inimigos. Por isso, vamos deixar os neurónios cumprirem a sua missão, sem os atrapalhar com listas, guardadas dentro de nós ou numa aplicação do telemóvel.
O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.