Na Assembleia da República vivem gatos, pavões, pombos e gaivotas. Quem cuida deles “respira melhor”
O lugar pode ser imponente, mas para os animais que lá nascem é um lar. Graças à enfermeira Lina e a outras colegas, a Assembleia da República acolhe gatos, pavões, pombos e gaivotas.
Na casa da democracia, nem todos têm uma pasta. Farrusca, Rapazito, Tobias, Guidinha, Rudi, Totó e Miau Maria são “colegas parlamentares de quatro patas” e há uma equipa inteira que cuida deles nas horas livres. Mas nem sempre foi assim.
Lina Gomes é enfermeira na Assembleia da República (AR) há 23 anos. Quando começou a trabalhar no Palácio de São Bento, muitos gatos andavam por ali ao abandono. Não demorou muito até perceber o infeliz destino dos felinos: quando as populações ficavam descontroladas, chamava-se o canil municipal: “Achavam que o abate era o mais simples.”
Ficou “em estado de sítio” e, mesmo sem autorização, começou, com ajuda de outras colegas, a alimentá-los e a dar a pílula às gatas. Na altura, eram 23 no total. Conta que chegaram a ser proibidas de tratar os animais, mas, um tempo depois, não sabe precisar quanto, “as pessoas começaram a ter uma mentalidade diferente”.
A criação da Casa dos Animais de Lisboa (CAL) teve um papel crucial na melhoria de vida dos “bichinhos”, como lhes chama carinhosamente. Desde 2014, o abate deixou de ser resposta para os animais que viviam nas ruas de Lisboa. A proposta vencedora do Orçamento Participativo de 2009/2010 transformou o antigo canil em Centro de Recolha Oficial “dos animais errantes da cidade”.
Assim, a AR estabeleceu uma parceria com a CAL (Lina mexeu "uns cordelinhos", mas não se envolveu directamente) e quase todos os animais foram castrados. Só duas gatas não se deixaram apanhar, mas tomavam a pílula e, por isso, não houve muita preocupação. Morreram, “já velhinhas”, algum tempo depois.
Agora, os veteranos são a Farrusca e o Rapazito, que “devem ter 14 ou 15 anos”. O Rapazito anda doente, talvez tenha levado um “encosto” de um carro, mas não deixa que ninguém se aproxime para o tratar – nenhum humano, pelo menos. Rudi até pode ser “o maior caçador de ratos da região”, mas quando o Rapazito quer comer da taça dele, passa-lhe a fome, deita-se e espera que a refeição do amigo acabe.
“São mesmo os melhores amigos, dão turrinhas um ao outro, um vai chamar o outro quando aparece a comida”, conta Lina, com a expressão ternurenta que lhe pinta o rosto quando fala dos animais.
A Guidinha e o Tobias nasceram há 12 ou 13 anos. São irmãos e não podiam ser mais diferentes. A Guidinha anda sempre escondida, só aparece para comer. O Tobias “é o dono disto tudo”, o “mandão-mor”. É muito charmoso e educado, mas não pode ver as pessoas que lhe são próximas a fazer festas a outro: se vir, começa “a perseguir e a tentar bater”. O que custou ao Miau Maria, o caçula do grupo, uma disputa da qual rapidamente desistiu. Do alto dos seus dois anos, acha que o lugar do Tobias lhe pertence, mas “agora toma a posição inteligente de fingir que é submisso – não é nada, às vezes pegam-se à luta”.
A população felina da AR conta ainda com o Totó, sempre escondido, muito assustado. “Todos os outros lhe batem” e ele foge, mesmo nas horas de refeição: vai comer à casota para ninguém o importunar.
“Humanizar” através dos animais
Além dos sete gatos, os jardins do Palácio são habitados por pavões, pombos e duas gaivotas, Zora e Dora. Para manter todos estes animais, há uma equipa de quatro pessoas que, nas horas livres (e fins-de-semana e feriados), trata de todos. Já foram outras, mas a reforma foi chegando. A única que se mantém é Lina, (espera) durante pouco tempo. Não tem dúvidas de que, quando chegar a hora de ir para casa, os animais ficam em boas mãos. Confessa que “às vezes cansa um bocadinho, e no Inverno custa um bocado mais, mas nunca deixaria de o fazer”. “É um prazer”, conclui.
Paula Cristina faz visitas guiadas à AR e nunca se esquece de mostrar os animais. Dá-lhes de comida e faz o que pode, mas diz que é “uma mera ajudante” e aponta para Lina: “O mérito é todo desta senhora, é tudo do bolso dela.” Já pediram ao conselho de administração para sustentar os gastos dos animais. Sabem que há abertura, mas falta “transformar a boa intenção numa realidade”.
E pode estar para breve. Ao P3, Eurídice Pereira, presidente do conselho de administração da Assembleia da República, garante que “o processo está mesmo a terminar” e assim que a ração que ainda existe acabar, já não será Lina a suportar os gastos. Até porque a presença dos felinos faz “todo o sentido”, têm “uma utilidade, não é só uma gracinha”: com eles na AR, os ratos, que em tempos invadiam a Divisão das Edições para roer todo o papel que encontravam, ficam longe do território reclamado pelo Tobias.
Lina e Paula não deixam, por nada, de cuidar dos “bichos”, são apaixonadas por eles, asseguram. E eles por elas. Correm para o colo quando as vêem, seguem-nas para todo o lado (mesmo quando não têm comida) e deixam-se pegar só porque sim.
Miau Maria e Paula têm uma relação muito especial: “Só faltava saltar-lhe para cima”, brinca Lina. A funcionária parlamentar gosta muito de fotografar o colega de quatro patas e até lhe criou uma conta no Instagram com “um objectivo muito claro: ajudar a preservar aqui dentro o toque de humanidade que se quer numa casa que consegue ser tão desumana”. O Tobias também tem uma conta com muitos admiradores, incluindo deputados que o seguem e partilham fotografias dele, mas essa, apesar de várias tentativas do P3, não se sabe quem criou.
“Até se respira melhor”, diz Paula, enquanto faz festinhas a Miau. Estar ali com os animais, diz, é “terapêutico”. Apesar da ligação mais especial com os felinos, não se esquece dos pavões que todos os dias às 16h30 se deitam à espera que os alimente. Lina consegue distinguir Zora e Dora ao longe, apesar de parecerem iguais para olhos menos treinados. E até os pombos, tantas vezes desprezados, têm lugar no ecossistema parlamentar dos jardins do Palácio de São Bento.
Texto editado por Amanda Ribeiro